Começámos por conhecê-lo no colectivo Porta dos Fundos, mas nos últimos anos Gregório Duvivier tem conseguido afirmar-se para lá dos sketches no YouTube, sem nunca perder a graça. É poeta, cronista na Folha de São Paulo e desde 2017 que faz o Greg News (HBO Brasil), um talk show inspirado pelo americano Last Week Tonight with John Oliver. E esta é uma biografia redutora. No essencial, tenta brincar e desconstruir o que o rodeia, na maior parte das vezes, a política brasileira. Mas a seriedade do tema não o deixa divagar. O humor é uma arma, mas só isso não chega. Aos 33 anos, o brasileiro volta a Portugal para apresentar Sísifo, que parte do mito grego para olhar para o mundo hoje. Escrito a meias com Vinícius Calderoni, o monólogo é uma comédia trágica, tal como a nossa vida se continuarmos a assobiar para o lado. Aquele homem em tempos condenado a carregar uma pedra morro acima, para a ver rolar por ali abaixo, obrigando-o a recomeçar o trabalho para toda a eternidade, é a história da humanidade. Na versão simples de Gregório e Vinícius, Sísifo é o primeiro gif de sempre. E serve agora como grito de alerta. A peça estreou-se em Lisboa na quinta-feira, seguindo viagem por Braga (Sáb), Caldas da Rainha (Dom), Porto (Seg) e Estarreja (Ter), para voltar novamente a Lisboa (Qua).
Esquecemo-nos depressa da História?
Claro. O Brasil é especialmente bom nisso. Está sempre existindo sem passado. O Millôr Fernandes dizia que o Brasil é um país que tem um passado enorme pela frente. Somos um país sobrevivente, mas a falta de memória é uma das causas da nossa catástrofe. A gente parece que está sempre começando tudo da estaca zero.
Por isso é que pegou na história de Sísifo?
Sim. Essa peça é uma ideia que eu tive com o Vinicius Calderoni, que tem a minha idade mas já conta com uma obra vastíssima. Tem uma trajectória invejável e eu queria muito trabalhar com ele. Depois de muita insistência, realmente sentámos juntos. O Vinicius tem um humor que eu gosto muito, que é humor da tragédia, o humor para evitar a morte ou fugir dela. É um humor trágico. O Brasil vive uma espécie de velório da democracia, velório da classe artística, da produção cultural, das universidades públicas. Vários velórios estão a ser feitos e esta peça tem esse humor no velório.
Podemos então dizer que é uma peça política?
É política no sentido em que a gente está falando do que está acontecendo no Brasil, mas não só. A peça é muito permeável, inclusive a gente vai actualizando ela conforme as tragédias vão acontecendo no Brasil.
Sísifo era contra o poder. É assim que o Gregório se vê?
Um humorista é sempre contra o poder estabelecido. Deve ser. O humor tem de ser um acto de coragem. Quando é só perpetuação e preconceito, não é humor, é outra coisa. Para fazer uma piada é preciso correr um certo risco.
Por isso se emocionou com o elogio de Fernanda Montenegro que viu em si “um fôlego da resistência”?
O elogio da Fernanda vale para mim mais que um Óscar. Esteve a vida inteira contra o fascismo e o obscurantismo, fazendo o nosso país melhor. A Fernanda é o melhor que o país produziu. Um elogio dela para mim é a glória.
Porque é que o poder teme tanto a produção artística?
Eles vivem de espalhar o medo. E o humor é um acto de coragem. O humorista é contra o medo, como disse Ricardo Araújo Pereira. Não pode ter medo. O medo é a arma do fascismo. O humor é o antónimo do sagrado, do proibido.
Mas como é que se cria em tempos tão conturbados?
Eu acho que em tempos conturbados é quando mais se cria. Em tempos de crise eu faço um programa humorístico, uma peça de teatro, faço uma comédia. O humor ajuda.
É muito activo politicamente. Já sentiu alguma pressão por isso? Alguma porta se fechou?
Fecham-se portas das quais não sinto falta. Como a publicidade. Não faço mais, ninguém mais me chamou para fazer. Mas tampouco gostaria de fazer porque acho que existe um paradoxo, entre o artista que se posiciona e o artista que tem dinheiro para se posicionar. São coisas inconciliáveis. Quanto mais você se posiciona, menos publicidade se vai interessar. No Brasil, essa curva é clara. Não condeno quem faz publicidade porque eu não sei quais são as contas que a pessoa tem de pagar.
E como é que olha para o Brasil actualmente?
Estamos num momento muito perigoso. A milícia chegou no poder. Não tem nada a ver com a direita. Direita era Fernando Henrique Cardoso, como em Portugal é Passos Coelho ou Portas. Austeridade fiscal, mais pobres, isenção para os ricos, isso é a direita. Agora, um governo [o de Bolsonaro] que tem ligações tão próximas com grupos de extermínio – de extermínio mesmo, não é expressão… São amigos, premiaram, deram medalhas. [Bolsonaro] mora a dois passos de quem matou Marielle Franco. É muito mais sério. Um grupo de extermínio chegou ao poder. E ao capitalismo interessa muitas vezes o extermínio porque a morte controla as pessoas. O governo está fazendo reformas muito impopulares e, para as aprovar, tem de gerar pavor. Se não as pessoas vão à rua, como no Chile. Está muito clara a mensagem de Bolsonaro: isto não vai virar o Chile ou o Equador. Vai fazer como na Bolívia… O que acontece hoje no Brasil é um Estado que tem permissão para matar a quem lhe interesse que se mate para manter a suposta paz social.
A realidade ainda o surpreende?
O tempo inteiro. Eu nunca imaginei, por exemplo, que na Bolívia acontecesse um golpe à moda antiga com o exército depondo um presidente e liberando para si mesmo o assassinato. Botaram uma tresloucada no poder e agora podem matar quem quiserem. Eu não imaginava que isso fosse acontecer em 2019, mas está acontecendo.
O que é que lhe dá esperança?
Os jovens. Há um movimento muito forte nas escolas secundárias no Brasil. Me dá também esperança que o movimento negro esteja mais forte do que nunca. Mesmo os evangélicos: vários já estão contra o governo. Me dá esperança a juventude, muito forte e bonita.
Teatro Sá da Bandeira. Seg 21.30. 17,50-25€.