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Maria CunhaOwnever
Maria Cunha

O Rei não vai nu. Vai de mala ao ombro

Quando a Louboutin lhe bateu à porta, Fernando Rei não fez caso. Hoje é um dos poucos artesãos que mantêm a tecelagem manual viva no Minho e está a fazer uma mala de luxo para a Ownever que ainda traz palha agarrada à lã.

Mariana Morais Pinheiro
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Para trás ficaram os prédios e da janela do automóvel vêm-se agora vinhas arrepiadas pelo frio. Crescem nos socalcos do Minho mais profundo e o sol de Outono tinge-lhes as folhas de tons avermelhados, como se fossem pegar fogo. A acompanhar a estrada sinuosa que nos leva até Aboim da Nóbrega, em Vila Verde, a cerca de meia hora de Braga, onde vive o artesão Fernando Rei, erguem-se pés de couve junto aos muros, contam-se carros de bois abandonados e alguns espigueiros encharcados pela chuva impiedosa, que naquela tarde não dá tréguas. Como raio é que a Louboutin veio aqui parar?, perguntamo-nos.

“Eu nasci aqui, onde está este tear”, sorri Fernando,  de 48 anos, visivelmente feliz com a audiência que lhe entrou casa adentro. “Foi, não foi?”, atira na direcção da mãe, Rosa da Costa Araújo, que sentada num banco assiste impávida, de mãos sobre o regaço, à chegada de tanta gente. Rosa, que até já posou como modelo com a mais recente mala da Ownever, a marca minhota de acessórios de luxo, acena com a cabeça. “É uma mala muito jeitosinha”, graceja. 

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Pelo espaço, contíguo à casa principal onde mora a família, há meia dúzia de teares. Todos com dimensões e propósitos diferentes. “Ao todo tenho dez. Uns fazem cintos, outros franjas. Tenho teares de pedais e outros de mesa, que são mais fáceis de transportar”, explica Fernando, empoleirado num deles. Em seu redor, pelas paredes de pedra, estão penduradas tapeçarias com padrões e cores garridas; quadros de um romantismo bucólico, pouco diferente daquele que se vê pela janela da divisão; baús cheios; bancos corridos de madeira; e, nos armários e prateleiras, centenas de bobinas de fios de todas as cores. “Só uso lã e linho nacionais. O algodão vem de fora, mas o fio é feito cá, assim como o tingimento”, assegura em entrevista à Time Out.

Há mais de 20 anos que anda de roda dos teares. Trabalha com o coração, mas o ritmo cadenciado dos pés e das mãos em sintonia mostram que um certo automatismo já tomou conta de si. Puxa com força o batente, que comprime as linhas das peças com um baque surdo; depois, faz correr a lançadeira com as canelas, uma espécie de pequena canoa com o fio enrolado, que segue expedita através da cala, a abertura entre as linhas. Com os pés faz trabalhar os pedais e volta a repetir os movimentos, “respeitando sempre os andamentos, a cábula com os padrões”, explica. Não fosse o barulho, diríamos que Fernando parecia estar a tocar piano. 

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©DROwnever

Do lixo ao luxo

O seu primeiro tear foi encontrado no lixo, às peças, numa altura em que Fernando era Técnico de Actividades dos Tempos Livres num ATL, local onde teve o primeiro contacto com a tecelagem. “É um tear inglês dos anos 40, ainda o tenho. Montei-o e pu-lo a funcionar sem ninguém me ter ensinado. Fui um autodidacta”, ri. À tecelagem como hobbie seguiu-se um curso e, quando deu por ela, “aos fins-de-semana estava sempre de volta dos teares a fazer novos projectos. Fazia toalhas e outros têxteis para o lar”.

Em 2014 foi desafiado a aplicar os seus trabalhos ao calçado e, desde então, nunca mais parou. Criou a marca Tearte e comprou ao preço da chuva uma série de teares a donos já não tinham mais utilidade para eles, reflexo de uma arte em queda. Quatro anos mais tarde, o improvável aconteceu: a Louboutin estava interessada no que Fernando andava a fazer. “Estava na Feira Internacional de Artesanato, em Lisboa, quando uma empresa portuguesa, que fazia a mediação para a Louboutin e que andava por ali a sondar, me deixou um cartão. Eu, como nem conhecia o nome, não dei importância nenhuma”, conta o artesão divertido. “Um mês mais tarde, ligaram a dizer que me queriam visitar e que vinham com os designers da Louboutin e que já estavam a sair do aeroporto. Diziam-me assim: ‘Tem de garantir que faz mil, mil sacos’. E eu: ‘Dez ou 20 eu faço, mais não consigo!’. Mas eles estavam sempre a criar pressão, até que me cansei e disse-lhes: ‘Olhem, não quero participar’”. 

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Mas a Louboutin não se deu por vencida. “Eles voltaram à carga e nós arranjámos ajuda. Adaptei teares, tirei barras de madeira e substituí-as por inox, porque as primeiras não davam para fazer o que era preciso. Trabalhou a minha mãe, trabalhou a minha irmã, o meu cunhado… Foi tudo feito aqui, até os protótipos em lã e algodão, que eu depois mandava para eles testarem a cor”. Mas a notícia – que num armazém em Aboim da Nóbrega se faziam malas para uma das mais luxuosas marcas de sapatos do mundo – correu depressa e em pouco tempo chegava às mesas de um restaurante em Braga.

Cuidar e preservar

Maria Cunha, uma das responsáveis pela Ownever e fundadora da marca de sapatos Josefinas, almoçava quando ficou a saber da novidade. “Costumava ir ao restaurante da família do Fernando, e a Adriana, sua sobrinha, que trabalhava lá, comentou comigo que o tio estava a fazer uma mala para a Louboutin em Aboim da Nóbrega. E eu pensei: ‘Como assim?’. Fiquei fascinada e quis logo conhecê-lo. Chegámos a fazer uma colecção para a Josefinas em conjunto e ficamos em contacto desde então. Quando arrancámos com a Ownever, o Fernando foi logo a primeira pessoa em quem pensámos”. 

Criada em 2021, a Ownever aposta na sustentabilidade, durabilidade e proximidade. E, por isso, valorizam o que é português, trabalham com artesãos e reabilitam artes em declínio. “Queria fazer alguma coisa ligada ao saber português, com qualidade, que durasse para sempre, como aquela mala da nossa avó que vai passando de geração em geração”, explica Eliana Barros, designer de produto e fundadora da marca. “Para isso, apostamos muito na qualidade. Esta mala Gunta [870€], que se chama assim por causa da Gunta Stölzl, que foi uma das grandes divulgadoras da arte da tecelagem na escola Bauhaus, tem pele natural nacional e a cor é obtida através de extractos vegetais não poluentes”, acrescenta. 

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©Maria CunhaOwnever

A parte de tecelagem, feita pelas mãos hábeis de Fernando, demora cerca de duas horas para cada item e “uma hora no mínimo só para fazer a riqueza destes puxados”, diz, sobre o relevo no padrão. “A lã ainda vem com algumas impurezas, ainda é possível ver a palha agarrada”, acrescenta satisfeito. “Há lãs que são queimadas para serem limpas de impurezas, mas esta não”. Facto que lhe confere uma singularidade castiça. Luxo e ancestralidade em comunhão.

A Ownever, nome que vem da fusão de own (possuir) e ever (para sempre), têm já oito malas de produção própria, entre elas a 2157 (395€), que dá 135 anos de garantia até ao ano de 2157, altura em que se estima que será atingida a igualdade salarial de género. Recentemente, recebeu o bronze na categoria de Product & Packaging Design pelos Gerety Awards (mais um prémio internacional a juntar aos outros que a marca já recebeu durante a sua curta existência). Além das garantias sobre as suas malas, também fazem restauros de outras a pedido, acreditando numa lógica que contraria o consumismo desenfreado.

Em breve terão mais novidades. “A região de Barcelos, que é muito reconhecida pela sua olaria, tinha também muita porcelana que, infelizmente, começou a desaparecer. Conseguimos encontrar uma das duas ou três pessoas que ainda a trabalham e estamos a fazer uma mala com um detalhe em porcelana feito por ela”, explica Maria. Eliana acrescenta, em jeito de remate: “Esta é a arte que conta uma história e se não a valorizarmos acaba por morrer”. 

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