2018 é um ano de mudanças... É. Há dois anos fiz 40 anos e este ano faço 20 de carreira. Acho que quando chegamos a determinadas etapas na vida é impossível não olhar para trás e não fazer um balanço.Percebi que as coisas me aconteceram muito cedo. Comecei a apresentar colecções na Moda Lisboa com apenas 22 anos e abri uma loja e um ateliê também muito novo. E, claro, as coisas foram ganhando uma estabilidade que, apesar de ter coisas boas, se não estivermos alerta nos faz estagnar.
O lema na vossa página no Facebook é: “New Way, Old Way, Vogue Femme, Dramatics, Comedians!!!!” Porquê?
Inês Pando – Antes de começarmos a Groove Ball tínhamos um projecto chamado Jungle Cabaret. Era um cabaré louco. Daí vêm o “Dramatics” e o “Comedians”.
E o resto?
IP – O “New Way, Old Way, Vogue Femme” tem a ver com as correntes do voguing. O Igor [Ribeiro, aliás Ghetthoven, músico, ausente em digressão com Moullinex à data desta entrevista] seria a melhor pessoa para explicar isso. Arranjámos alguma coisa com que nos identificávamos para fazer uma festa queer, livre e segura.
Simone Francisco – Já foi há algum tempo [as festas Groove Ball começaram em 2011]. A noite do Porto não era o que é. Agora há muito mais diversidade. O Igor era superligado ao movimento [voguing], cresceu a tentar trazer para cá um bocado dessa cultura americana que nasceu nos anos 1970, 80. Além disso, também gostávamos daquela cena dos Club Kids dos anos 80, e tudo se misturava um bocado, num nicho de pessoas que queriam ser ouvidas, ou ter um sítio para se expressar.
E surge a Groove Ball.
SF – Também se deve falar do Paris Is Burning [documentário de 1991 sobre a cultura das ballrooms nova-iorquinas]. Havia várias houses de vogue feitas por pessoas que eram postas de lado: queer, da comunidade afro-americana, latina. Ou seja, todos os que eram vistos como weirdos. As ballrooms eram casas de acolhimento dessas pessoas, uma forma de elas se sentirem integradas em qualquer coisa.
Uma espécie de santuário.
SF – Exacto.
IP – Era inspirado pela cena da moda na altura, a alta-costura, as supermodelos.
SF – É daí que surge o vogue. É um tipo de dança inspirado em poses de modelo.
IP – Mas nós quisemos pegar mais, não tanto na dança em si, mas no conceito de uma ballroom...
SF – Na ideia de criar um espaço seguro e que não fosse necessariamente num sítio gay. Não que tenhamos alguma coisa contra isso. Acho, obviamente, que é importante que existam esses sítios. No entanto, também acho importante que as pessoas saiam do armário. Se lutamos constantemente pela igualdade e por uma aceitação em sociedade e não saímos do armário… é contraditório. Toda a gente pode ser queer. Não tens de ser gay para ser queer. Basta integrares-te no movimento, identificares-te com ele e defendê-lo. Inclusive com abertura para as pessoas heterossexuais que, por uma questão de cultura e dos meios em que se inserem, acabam por estar muito afastadas.
As festas acontecem, desde 2011, sempre em espaços, digamos, generalistas?
SF – A primeira aconteceu no Plano B (na altura não fazia parte da organização mas já era amiga da Inês e do Igor) e depois no Maus Hábitos. Tivemos propostas de alguns sítios rotulados como LGBT e gay e nunca quisemos. A Groove Ball tem um público muito heterogéneo; desde rastas a heteros, queers, club kids, drag queens.
Já nasceu assim tão heterogénea?
IP – Já tínhamos algum público graças às performances que fazíamos [como Jungle Cabaret] e a primeira Groove Ball teve quase 900 pessoas. Surreal. Dos nossos pais aos primos, ao hetero mais hetero. Ninguém estava à espera que tivesse aquele impacto. E, não querendo ser pouco modesta, acho que isso abriu algumas portas para que coisas acontecessem noutros espaços.
Entretanto, mudaram-se para o Maus Hábitos.
SF – Começámos por um caminho um pouco diferente do que temos agora. A festa era bastante mais limitada, o nosso fundo de investimento e a margem de manobra bem menores. Inicialmente só tinha música, depois começámos a introduzir o drag, tirando-o um bocadinho do circuito gay.
Quem vai à Groove Ball dissocia o drag do circuito gay?
SF – É meio, meio.
IP – As reticências eram mais nossas do que do nosso público.
SF – Trabalhámos durante dois anos com a Camel Toe. Muita gente recebeu-a bem porque era uma coisa diferente e o nosso conceito já incluia a diferença, e outros estranharam mas entranharam.
IP – Não queríamos ter uma drag só por ser drag, só a fazer o show. Demos-lhe total liberdade e ele fazia tudo. Foi ele que começou as battles.
SF – Quando fizemos o primeiro concurso de vogue as pessoas não sabiam o que isso era, e iam para o palco fazer twerk. Achavam que era um concurso de dança.
As pessoas desconheciam o vogue por serem demasiado novas?
IP – As pessoas associam o vogue à Madonna por causa da canção [“Vogue”, 1990], mas mais à música do que ao videoclip. Nós só sentimos a diferença [no aumento da percepção do vogue] quando a FKA Twigs fez a “Glass & Patron” [2015]. O vídeo é só voguers, uma battle ali no meio, e acho que é a partir daí que o hype surge outra vez. As pessoas foram pesquisar qual era a base daquilo.
SF – Depois, a Rihanna recrutou dois bailarinos da FKA Twigs e tinha vogue nos concertos. E assim chegou à comunidade queer. Foi um salto gigante.
Que idade tinham as pessoas nas primeiras Groove Ball?
SF – Tínhamos uma faixa etária mais nova...
IP – Isto no início, no Maus Hábitos. Na altura devia andar entre os 18 e os 25. Agora é mais dos 25 para cima.
SF – O registo musical da festa era diferente. O final dos anos 80 e início dos 90 era muito aquela onda clubbing, house clássico, tecno. Tentámos introduzir isso e o público não foi, de todo, receptivo.
A sério?
SF – Não eram estilos que colassem muito. Naquela altura o hip-hop e o r&b tinham entrado em grande e as pessoas queriam ouvir isso. Aí, tivemos que contornar ligeiramente o nosso caminho e dar-lhes um pouco do que queriam de forma a cativá-los a virem à festa.
IP – Entretanto já lhes tirámos tudo [risos].
SF – Aos poucos fomos-lhes dando o nosso conceito. Primeiro o drag, depois os concursos, a música… Neste momento, mesmo que em algumas alturas seja mais comercial, é sempre muito mais dance music e não tanto r&b e hip-hop. E agora que o vogue é um boom, mais o [concurso televisivo] RuPaul’s Drag Race…
IP – O vogue beat está neste momento em todas as músicas. O Jay Jay [Revlon] está sempre a passar. Ele faz algumas ballrooms, e na competição o que se ouve é o vogue beat de agora e não o original.
Quem é Jay Jay Revlon?
SF – É um artista que temos em residência e com a sua própria house of vogue. É de Londres, voguer de base e DJ, e já ganhou imensas competições europeias. Trouxemo-lo pela primeira vez em Outubro e correu muito bem. Foi engraçado porque não tínhamos inscrições para o concurso [de vogue]. Achámos que as pessoas estavam com um certo medo porque pensaram que isto agora era a sério mas ele pôs todos a dançar. Ele disse que não queria palco, abriu um circulo no meio do público e foi incrível. Na altura, achámos que era um investimento fixe trazermos alguém de fora para colaborar connosco a ver se o movimento crescia, e está connosco até agora.
O movimento cresceu?
IP – Sim. Para a última edição o Jay Jay fez um workshop [de vogue] e algumas pessoas que vão à festa compareceram, para estarem completamente aptas para dançar [risos].
SF – Correu superbem. Estávamos meio reticentes porque às vezes estas coisas, no Porto, não colam. Mas de repente, num sábado à tarde, tínhamos não sei quantos miúdos à porta do Maus Hábitos. Ainda é uma comunidade pequena mas está a crescer.
IP – Queremos manter o vogue, porque faz parte da essência da Groove Ball, mas a nossa ideia é mostrar artistas queer, portugueses e alguns icónicos estrangeiros, como a Vaginal Davis, que fizeram ou fazem a diferença e lutam pelos direitos de toda a comunidade.
As festas têm uma face de divulgação cultural?
IP – É difícil convencer a maior parte dos jovens a ir ver uma exposição num domingo à tarde ou assistir a um concerto da Symone [De Lá Dragma, drag queen] sabe-se lá onde. Mas saímos de casa para beber copos. A nossa ideia passa por pegar nos copos e fazer com que as pessoas que estão lá quase que sejam obrigadas a ver gente com talento, da comunidade queer, que tem muita coisa a dizer, e que ainda devem ser os mais ostracizados. Mas há cada vez mais reconhecimento.
No final do ano passado apresentaram um projecto mais abrangente, a House of Groove Ball. Para que serve?
IP – Para abraçar artistas queer que gostassem de trabalhar nalgum tipo de projecto mas que não têm oportunidade de se mostrar. Ainda não temos espaço físico. Vamos candidatar-nos a bolsas. Queremos que seja mesmo uma casa de artistas portugueses, da pintura à música, à dança, ao teatro, o que quer que seja, desde que se foquem na comunidade queer. E que o trabalho deles seja depois mostrado na festa. Ou seja, residências artísticas e com remuneração. Uma coisa diferente das festas mas que culmine nas festas.
Qual foi o melhor momento da melhor Groove Ball?
SF – Fiquei completamente fascinada com a primeira vez em que o Jay Jay veio. A casa estava cheia e ao rubro, era uma parceria com o [festival de cinema] Queer Porto, não havia inscrições para o concurso, ela pega no micro, vai para o meio do público e, de repente, estavam umas 15 pessoas a dançar. Aquilo foi a essência de uma battle.
IP – Para mim foi a Symone na última festa [21 de Abril]. Ela divide a performance em três actos e no final cantou a “Desfolhada Portuguesa” da Simone. Eram quatro da manhã e toda a gente cantou aquilo. Até os estrangeiros estavam a apanhar o ritmo. Como é que isto acontece?