Ouvir Martinho da Vila é mergulhar a fundo nas múltiplas identidades que compõem o mosaico cultural brasileiro. A sua música é do povo, é grande por ser simples e por querer entrar na vida das pessoas. A sua sabedoria octogenária já passou por muito, ao longo das últimas décadas. A ditadura quis silenciá-lo, mas ele resistiu. Com a bonita cadência do seu samba, enfrentou a pressão da censura e ensinou que a alegria também faz parte da resistência.
O Brasil é a sua inspiração. A sua vida tem sido moldada em Duas Barras, a sua terra natal no interior do Rio de Janeiro, em Vila Isabel, o bairro carioca onde deu os primeiros passos numa escola de samba, e na Barra da Tijuca, onde hoje vive.
Mas as suas viagens pelo mundo da lusofonia deixaram um sabor especial. Martinho da Vila é um brasileiro que reflecte a cultura dos seus ancestrais. Nos discos e nos livros, o sambista e escritor conecta o país às suas raízes africanas. Dedicou-se à afirmação da identidade negra e a lutar contra a discriminação racial. Tornou-se um defensor do movimento negro no Brasil, consciente da capacidade do povo brasileiro para criar e transformar.
Neste concerto, com banda completa em palco, Martinho da Vila vai visitar os maiores sucessos de 50 anos de carreira e mostrar os temas do seu álbum mais recente, Bandeira da Fé. É um disco de esperança e de saudade, onde cabe o Brasil, África e Portugal.
Ecléctico nos seus vários ritmos, vai do samba ao forró e do rap a um abraço ao fado. O Fado das Perguntas é uma homenagem aos milhares de brasileiros que procuram uma vida melhor em Portugal – e que aqui descobrem o que é o frio e a saudade e se consolam com bagaço, jaquinzinhos e pastéis de bacalhau. O álbum retrata o momento actual brasileiro e exalta o carnaval, a mulher, o samba e a negritude, abrangendo também reflexões pessoais. Martinho da Vila pode estar desencantado com o seu amado Brasil, mas ninguém apaga a festa que habita dentro dele.
Conheceu Angola em 1972, numa altura em que o país ainda lutava pela independência. É o país dos seus bisavós, é a terra da sua ancestralidade africana. De que forma isso o influenciou como artista e como pessoa?
Quando estou em Angola ou Portugal, sinto-me como um cidadão destes países. Recebo influências e tento influir. Lembro da emoção dessa primeira visita até hoje, e ela se repete de cada vez que retorno ao país. No início dos anos 80, tive a alegria de organizar uma digressão de artistas angolanos no Brasil, chamada O Canto Livre de Angola. Foi a primeira vez que o público brasileiro teve acesso a um pouco da cultura africana. Esses concertos deram início a uma parte cultural do movimento negro no Brasil, algo que até hoje rende frutos.
Conhecer África ajudou-o a conhecer melhor o Brasil?
Ajudou muito. Há uma África no Brasil e um Brasil na África. Os brasileiros deveriam visitar mais os países africanos. Além dos muitos laços que nos unem, são destinos muito interessantes e bonitos. Eu estive em vários países africanos como Moçambique, Nigéria, Cabo Verde, África do Sul e Benim. As minhas andanças por África viraram um livro, Kizombas, Andanças e Festanças, que escrevi há quase 40 anos.
Ao longo da sua carreira, tem sido um importante difusor da cultura negra no Brasil. Como é ser negro no Brasil hoje?
É melhor que antigamente, mas há desconfortos.
Viveu no tempo da ditadura militar no Brasil, conhece bem a dor de viver na ditadura e na censura.Tem receio que a história volte a repetir-se?
Não tenho medos. Não há clima para ditaduras militares na América Latina.
Num momento como aquele que o Brasil está a viver, como é que a música pode ajudar?
Pode colaborar consciencializando. A música tem poder transformador.
Depois de 50 anos de carreira, o que lhe dá mais prazer na música e nos palcos?
A música não foi exactamente um projecto de vida, um sonho. Foi uma coisa que, aos poucos, foi acontecendo... E eu fui me esmerando. Ainda tenho muitos sonhos prazerosos, mas não devo revelar. Pretendo, enquanto tiver voz, continuar cantando. Conviver com jovens, aprender mais do que ensinar e levar a vida devagar, devagarinho.
Além de uma longa carreira na música, tem também uma longa carreira na literatura, com mais de 15 livros editados. Como leitor, o que é que mais gosta de ler?
Gosto de ler livros de romances, contos, poesias e leio diariamente artigos em jornais impressos.
O que podemos esperar deste concerto?
Projectei um show bonito visualmente, mas sem pirotecnia, que deve emocionar e alegrar o querido público português. Será um show baseado no meu álbum mais recente, Bandeira da Fé, com músicas novas, inclusive o Fado das Perguntas, uma nova composição minha. Os meus grandes sucessos serão apresentados, entre eles Casa de Bamba, Canta Canta Minha Gente, Mulheres e Madalena do Jucu. Também está incluída a canção Dar e Receber, que gravei com a fadista Kátia Guerreiro [para o álbum Brasilatinidade, em 2005].
O que é que mais gosta de fazer quando está em Portugal?
Gosto de andar pela cidade durante o dia, degustar a rica culinária do país e, à noite, ir a uma casa de fados, preferencialmente vadios, com desgarrada e tudo o mais. Eu adoro Portugal e principalmente o público português, sempre carinhoso comigo e vibrante nos meus shows. A minha admiração por Portugal começou ainda pequeno, na escola primária, ao estudar História. Nessa época eu já sonhava em conhecer este belo país. Em Portugal, a comunidade brasileira continua a crescer cada vez mais.
Que mensagem gostava de deixar aos brasileiros que estão a viver em Portugal?
Brasileiros! Estando em Portugal, vocês estão em casa.