Há uma música em que dizes para aproveitarmos este disco porque pode ser o último…
Isso tem a ver com o facto de os discos estarem a morrer. É um bocado ingrato fazer maratonas de dois ou três anos de trabalho para depois aquilo ser consumido na voragem da novidade. Tens que competir no meio do ruído das redes sociais, numa arena de vaidades, com o que te é mais especial e precioso. Será que vale a pena? Se puser uma foto do meu almoço ou do meu bebé, tenho mais likes do que com a música que fiz com as minhas emoções e pensamentos. Vês muitos músicos com problemas de depressão e suicídio porque é muito ingrato teres que “vender” a tua arte num mercado em que se vende de tudo. É um bocado perverso, parece que tens de perder a tua privacidade para ganhar a atenção das pessoas.
Já tens mais de 15 anos de carreira. Achas que tens tido o reconhecimento devido?
Por um lado sim, por outro não sei. Muitas pessoas começaram a ouvir hip-hop porque a minha música chegou a públicos diferentes. Ter pessoas de diferentes gerações nos meus concertos foi uma prova de que consegui essa transversalidade. Mas dentro do Capicua acaba de editar ‘Madrepérola’, um disco que explora um lado mais solar e que coincidiu com a sua primeira gravidez. Ana Patrícia Silva conversou com ela sobre ser mãe, mulher e rapper num mundo pouco amigo das mulheres. João Saramago iluminou-a com a luz do Porto. “O Porto não está a defender os portuenses” entrevista A Capicua hip-hop houve momentos em que não tive esse reconhecimento. Acho que uma parte do público e dos meus pares não se identifica comigo nem com o estilo de rap que eu faço, mais poético, mais político-social. Quanto mais longe cheguei, menos próxima estive desse reconhecimento. Por outro lado, há muita gente que percebe que andei a mostrar que é possível uma mulher ter uma carreira longeva no hip-hop.
A história do hip-hop em Portugal mostra que, além de haver poucas mulheres a fazer rap, são poucas as que conseguem resistir no tempo.
Porque é difícil, de facto. Tens que quebrar a barreira da falta de auto-estima. Para uma mulher é mais pesado, culturalmente, ter a segurança de dizer que o meu trabalho é válido, que vale a pena mostrá-lo ao mundo. É preciso contrariar uma socialização que nos atira para o auto-boicote permanente.
Somos ensinadas desde pequenas a não acreditar nas nossas capacidades.
Sim, e de nos valermos não dos nossos talentos, mas do nosso aspecto físico. Somos mais estimuladas para casar e ter filhos do que para ter uma carreira. É uma corrida de obstáculos, é preciso resistência.
Como é que conseguiste ter essa resistência?
Pela minha personalidade, pelos meus pais, pela educação que tive, pela militância política e associativa na adolescência. Acho que fui sempre estimulada a ter espírito critico, a valer-me dos meus talentos, a ser uma pessoa independente, a ser uma mulher feminista. Houve momentos em que foi difícil, mas por um conjunto de factores – alguns de sorte, outros de trabalho, uns de privilégio, outros de mérito – consegui. Também tive a sorte de ter começado com a M7 [a rapper e humorista Beatriz Gosta], tinha uma mulher ao meu lado e juntas fomos rompendo obstáculos. E por ter encontrado um produtor, o D-One, que sempre trabalhou connosco de igual para igual. Quando estás sozinha, é muito mais difícil. O mais importante é criar uma rede de apoio. Começar é difícil, resistir é hercúleo.
O que é que a maternidade te ensinou sobre o empoderamento feminino?
Aprendi que é importante conectarmo- -nos com o nosso lado biológico. Eu sou socióloga e tenho essa perspectiva de que as diferenças de género são culturais e que as diferenças entre sexos são também muito mais construídas do que biológicas.Mas quando me reencontro com esse lado biológico da reprodução, do parto e da amamentação, acho que as diferenças não nos devem distanciar ou hierarquizar, mas devem encher as mulheres de orgulho. Quando conseguimos comandar o nosso próprio processo reprodutivo, saímos com uma auto-estima muito reforçada, sentimo-nos empoderadas e invencíveis. Ser mãe é muito exigente em termos de entrega, de cansaço, de falta de liberdade. Mas, ao mesmo tempo, é lindo, é poético, é a coisa mais intensa que podemos experimentar.
Assusta-te trazer um filho a este mundo? Ou é um acto de optimismo, de acreditar que o mundo vai melhorar?
Se não consegues fazer um mundo melhor para os teus filhos, faz filhos melhores. Acho que todas as gerações passam por essa ideia de que o mundo está demasiado feio para acrescentarmos mais pessoas. Do ponto de vista ecológico, de facto somos muitos e não devíamos ter mais filhos, mas, se nos deixarmos dominar pelo medo, deixamos de viver.
O que é que temos de ensinar aos nossos filhos para serem pessoas melhores?
Uma educação feminista é essencial para homens e mulheres. Mas a educação é um quotidiano de pequenas lições e de grandes exemplos que vamos dando sem sequer ter consciência disso. Eles acabam por absorver a nossa forma de estar no mundo. Temos de ser o exemplo mais perfeito possível, dentro das nossas limitações enquanto seres imperfeitos.
Alguma vez te prejudicou assumires que és feminista?
Em termos estratégicos, é sempre melhor quando os músicos são anti-sépticos, quando não opinam sobre as coisas e fingem que está sempre tudo bem para não chatear ninguém e vender o máximo possível. Essa nunca foi a minha postura, eu sempre encarei a música como um megafone para as minhas causas e as minhas preocupações. Um artista, no verdadeiro sentido do termo, é muitas vezes incómodo, mesmo que isso custe uns concertos a menos. Todas as pessoas que têm um microfone na mão têm uma responsabilidade. Há que viver com isso, sem que se torne demasiado pesado ao ponto de não termos liberdade de criar, não deixar que as causas eclipsem o nosso trabalho artístico.
A propósito do que aconteceu com o Valete [a música e o vídeo de “BFF” foram acusados de normalizar a violência contra as mulheres], até que ponto é que a liberdade de expressão e a liberdade artística podem servir como escudo?
Desde que não entrem na difamação, no discurso de ódio, em coisas que estão prescritas na lei como limites, os artistas são completamente livres. Mas o artista está num contexto cultural e social, que é determinado e que não pode ser ignorado. Eu sou livre de criar e as pessoas são tão livres quanto eu de comentar e criticar. É um jogo que toda a gente joga quando está no espaço público. Mas com as redes sociais criam-se ondas de reacção que acabam por ser desproporcionais.
Poderia ter sido uma conversa importante.
Sim, e não foi essa conversa que aconteceu.
Também porque ele reagiu daquela forma, com ameaças. Surpreendeu-te a reacção dele às críticas?
Custa-me comentar esse caso em particular porque é uma pessoa que eu conheço pessoalmente, tenho menos capacidade crítica. O que eu acho é que a discussão poderia ter sido importante e acabou por ser uma gritaria. Às vezes temos a oportunidade de ter discussões interessantes sobre essas questões da liberdade criativa, do politicamente correcto no bom sentido do termo, da importância do simbólico, da forma como as minorias têm que ser protegidas de determinados tipos de banalização de ataques e de criarmos uma linguagem e uma forma de estar em cidadania mais inclusiva e justa. Mas depois entramos nestas espirais em que uns se ofendem com tudo e não há conversa possível.
Tens uma música sobre a situação actual do Porto, a “Circunvalação”. Como vês o rumo que a cidade está a tomar?
Essa música fala do Porto real e não do Porto postal. Do Porto dos portuenses que todos os dias vivem a cidade. Nada contra os turistas, mas o bem-estar das pessoas foi subjugado aos interesses do turismo enquanto indústria de consumo rápido e de dinheiro rápido, com impactos muito profundos no quotidiano.
O Porto que sempre conheceste está a desaparecer.
Sim, a cidade descaracteriza-se e depois todas as cidades europeias são iguais, todas têm as mesmas lojas, os mesmos cafés, as mesmas cadeias de hotel. Já para não falar do bullying imobiliário, do lixo na cidade, da sobrecarga dos transportes públicos. Se formos ver o que a UNESCO escreveu quando atribuiu o título de Património Mundial da Humanidade ao centro histórico do Porto, dizia que era um conjunto que valia por ser castiço e por ser vivido. Não pela sua monumentalidade, mas por ter um tecido vivo de pessoas que habitam aquelas casas, que têm a roupa a secar à janela, têm as mercearias, os pequenos restaurantes. Vamos perder aquilo que a cidade tem de mais valioso, que é o carácter, com uma gente muito orgulhosa de si. É especialmente irónico, porque o Porto sempre foi uma cidade que se bateu pela liberdade. Os portuenses sempre defenderam o Porto até ao fim! Acho que agora o Porto não está a defender os portuenses. Era bom pararmos com essa coisa da cidade acontecimento, do branding, do marketing urbano, da cidade postal e pensar: como é que conseguimos reverter este dinheiro que estamos a criar com o turismo a favor das pessoas que vivem aqui? Como é que vamos minimizar o impacto deste consumo rápido e desta voragem turística? Temos de começar a pensar nisso, senão não vai ser fácil.