Rui Paula
© Marco Duarte
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Rui Paula: "Temos muitos restaurantes bons e consistentes, dignos de três estrelas"

De olhos postos no mar, o chef da Casa de Chá da Boa Nova, que recebeu a segunda estrela Michelin, encarna uma espécie de figura mitológica, a de Poseidon, um deus marinho capaz de converter o pescado em seu redor em pratos fabulosos.

Mariana Morais Pinheiro
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A Casa de Chá da Boa Nova recebeu em Novembro a segunda estrela Michelin. É o segundo restaurante no Norte do país, depois do The Yeatman, em Vila Nova de Gaia, a conseguir esta proeza. Ter uma estrela foi sempre o seu sonho. Como é ter duas? Que trabalho foi e é preciso fazer?

Primeiro, temos de trabalhar sempre para os nossos clientes; depois, definir muito bem o conceito – o nosso é trabalhar o mar, que é o que temos de melhor. Um mar que tem os melhores peixes do mundo, porque as águas são frias, bem oxigenadas, cheias de algas e, como tal, os peixes e os frutos do mar têm uma textura diferente e isso é muito importante. Nós primamos pela diferença aí. Não há muitos restaurantes a trabalhar o mar da forma como nós o trabalhamos. Trabalhamos com a frescura máxima, com essência, fazemos a mise en place com tudo muito fresco. As pessoas sentem isso: não só estão a olhar o mar, como estão a senti-lo à mesa. Temos 21 pratos baseados nestes princípios. Como? Como somos um povo descobridor, em vez de momentos temos Cantos, inspirados em Camões, e isso permite-nos viajar. Andámos por vários sítios no mundo. Da Ásia às Américas. Posso fazer um salmonete, que é um prato que eu tenho na carta, com bobó e assim tenho um cruzamento com o Brasil. Temos alguns pratos mais nossos e outros com o nosso produto cruzado com outras influências. Influências que nós transmitimos aos outros e que também trouxemos. Isto é o nosso conceito, a base com a qual começámos a trabalhar. Sempre com consistência.

Temos um mar rico em pescado e muito variado, é verdade, mas somos conhecidos como o povo que come bacalhau desde a Idade Média, segundo alguns estudos. O Conselho Norueguês de Pesca adiantou também que, por ano, importamos cerca de 30 mil toneladas de bacalhau salgado seco. Isto é um contra-senso?

Neste momento temos um prato de bacalhau na carta: tripas de bacalhau. A cozinha portuguesa é uma cozinha muito ecléctica; é uma cozinha que tem assados, cozidos, fritos, estufados... E o bacalhau entrou nas nossas casas porque ele era seco. Era um peixe que chegava facilmente a zonas mais interiores e que se aguentava. É um peixe que não é nosso, é certo, mas nós demos-lhe uma salmoura nossa e única e, como tal, entrou no nosso receituário de mil e uma maneiras, como se costuma dizer. Mas somos um povo de pescadores, porque temos uma costa muito grande, por isso não vale a pena só falar de bacalhau. Gosto muito de robalo, salmonete, goraz, sargo, tamboril, viera, lavagante, lagostim. O peixe é uma proteína que dá para arriscar mais nas combinações, mais do que a carne até, que é mais redutora. O peixe, como é mais leve, dá para cruzar com outras coisas, dá mais liberdade, puxa muito mais pela criatividade. Temos tanto peixe bom e com uma textura tão boa e única…

Quando Ferran Adriá [um dos melhores chefs do mundo, mentor do extinto El Bulli, restaurante pioneiro na cozinha molecular] veio cá, elogiou muito o peixe português e a Casa de Chá da Boa Nova, dizendo que era “o restaurante mais bonito do mundo”. Estava no restaurante nesse dia?

Estava a gravar o Masterchef em Leça do Balio e não sabia que ele vinha cá. Telefonaram-me a dizer que estava cá o Adriá e eu disse: “Tens a certeza?”. Responderam-me: “Tenho, sim senhora”. Então, pedi à produção para vir ao restaurante no intervalo, para falar com ele, porque não é todos os dias que temos um chef dessa craveira no nosso restaurante. Fiquei entusiasmado, pedi e deixaram-me vir. Acho que ele gostou muito. Pagou a sua conta e depois teceu os maiores elogios nos órgãos de comunicação. Disse várias coisas bonitas sobre nós. Falou do serviço, falou da comida, falou de tudo.

Disse que a Casa de Chá da Boa Nova tinha um serviço “de três estrelas”. Porque é que ainda não temos um restaurante com três estrelas Michelin em Portugal?

Quem sabe se não vai ser o nosso? A melhor maneira de termos três estrelas é trabalhar muito bem para manter as duas que já temos. Mas sabe por que é que ainda não temos restaurantes com três estrelas? Porque o Guia Michelin é um guia que paga as suas contas. Umas vezes os inspectores apresentam-se, outras vezes não, por isso, são livres de fazerem o que quiserem. São livres de escrever bem ou de escrever mal. É um guia importante quer se queira, quer não, mas comparativamente a Espanha temos um território mais pequeno, a Espanha é cinco vezes maior do que nós...

Mas, ainda assim, não é proporcional. Pelo menos em parte...

Não é proporcional no número de restaurantes que têm apenas uma estrela. Só aí é que não é proporcional. Nós temos 20 com uma estrela e eles têm 170. É uma grande diferença e aí também não concordo, mas vamos concentrar-nos nos duas estrelas: eles têm 22 restaurantes, nós temos sete. É proporcional. No entanto, eles têm 11 restaurantes com três estrelas e cá não temos nenhum. Se calhar está na altura de começarmos a ter. Temos muitos restaurantes bons e consistentes, dignos de três estrelas. Não vou falar de nomes porque sou amigo de muita gente. Mas é importante continuar esse trabalho, é importante que o chef se mantenha no seu restaurante. Fala-se de um chef não sei quê não sei que mais, começa-se a falar de um restaurante, que até está a fazer um bom trabalho e, de repente, o chef já não está lá. Os chefs devem concentrar-se em fazer um trabalho com paciência. Se estão sempre a saltitar, nem fazem um bom trabalho para o Guia, nem para os clientes. E vou-lhe dizer mais, no dia em que trabalharem só para o Guia não vão a lado nenhum. O Guia quer que se trabalhe para os clientes e que, acima de tudo, façamos um projecto sustentado.

O chef também tem vários restaurantes. Como é que mantém a qualidade?

Com um caminho sustentado. Aos 26 anos abri o Cêpa Torta, em Alijó, com comida tradicional e tive o restaurante aberto durante 13 anos. Sabia fazer algumas coisas e tinha noção daquilo que queria. A minha mãe e a minha avó eram duas exímias cozinheiras e eu tinha jeito: gosto de conversar, sou afável, gosto de conhecer pessoas... Mas no início foi difícil. Tinha muitos pratos de tacho na carta, se não ficavam bem, deitava fora e fazia de novo. Até que ao terceiro ano aquilo começou a dar. E quando começou a dar, comecei a receber cada vez mais pessoas. Apareciam muitos viajantes e falavam-me dos outros restaurantes por onde passavam: “Comi uma terrina de foie gras”; “Olhe, fui a um restaurante e o molho era assim e assado”; “Ouça, aquele restaurante não sei quê, não sei que mais”. Percebi que se queria abraçar esta carreira tinha decrescer, então comecei a aprender. Tinha uma grande ânsia em fazer as tais terrinas de foie gras até que, a uma dada altura, comecei a refinar o meu caminho. Abri o DOC no Douro, que já vai com 14 anos, e depois o DOP na Ribeira, com 10. Mais recentemente, a Casa de Chá da Boa Nova, há cinco anos. Encontrei um caminho que é só meu, com o meu ADN, com equipas a acompanharem-me, evidentemente. Ninguém sozinho consegue alguma coisa.

E que ADN é esse?

É sermos humildes, trabalharmos para os nossos clientes, nunca deixar que a fama nos chegue à cabeça. Mesmo que atinja as três estrelas, vou continuar a ser a mesma pessoa. Humildade não é subserviência, é ter a capacidade de escutar os outros, porque há sempre alguém que é melhor do que nós.

As pessoas reconhecem-no na rua, por causa dos programas de televisão?

Em todo o lado. Uma vez ia para o Vidago Palace, tinha lá um restaurante, e parei numa área de serviço. Pedi um café e uma nata, mas apareceu uma senhora e virou- -se para mim: “Adoro o seu trabalho, posso tirar uma fotografia consigo?” Tirei, claro. Mas depois veio outra e mais outra e outra e outra e eu perdi a conta e o café ficou frio. Tinha acabado de chegar um autocarro que ia para um concerto do Tony Carreira [risos]. Gosto de contar esta história.

Voltemos à comida. Há duas casas importantes na sua vida, que remetem para o mundo da gastronomia. Esta e a da sua infância.

O amor que tenho pela cozinha, recebi-o através da casa de lavoura da mãe da minha mãe, a minha avó. Era uma casa grande onde se cozinhava para muita gente todos os dias, para os trabalhadores e para a família, e onde tínhamos de tudo. Tínhamos vitela, porco, galinhas, coelhos, ovos, legumes. Tínhamos tudo isso porque o meu avô tinha terras e vinho, em Favaios. Os fogões a lenha, os potes de ferro, os cheiros: veio tudo daí.

Uma cozinha simples?

Sim. A minha cozinha tem de ser simples, com técnica e visualmente bonita. O que é que isto quer dizer? Podemos trabalhar o mesmo ingrediente de três ou de quatro maneiras, mais um molho, uma proteína e já está. Sou contra vários elementos no prato. Basta ter sabor, textura e beleza. Quando há uma grande confusão, às tantas a pessoa já nem sabe o que está a comer.

Têm um menu de degustação integralmente vegetariano. Não é muito comum.

Não é. Pode haver mais restaurantes com menus destes, mas não o trabalham como nós. Quando chega um cliente,informamos que temos o menu XXI [Cantos], que se divide em XII e VI, com peixe e marisco, e um outro igual, mas vegetariano. Há momentos que se cruzam, com pratos que parecem iguais mas não são. Demorámos seis meses a criar esse menu. Entravam aqui pessoas com alergias, com intolerâncias, vegetarianos, vegan, que não podiam comer isto, outros que não podiam comer aquilo, e era sempre um lodo, sempre um stress na cozinha. Agora acabou, arranjei solução. E o vegetariano ou o vegan come com a mesma dignidade, porque paga o mesmo. Tudo com boa apresentação, bom serviço de sala e consistência.

Como foi levantar esta casa do chão, um edifício classificado como monumento nacional e desenhado por Siza Vieira nos anos 50?

Estava completamente no chão. Tinham roubado os cobres e os vidros, levaram tudo. Isto foi um grande investimento, arrisquei, pedi dinheiro emprestado e a Câmara investiu outro tanto – já era a terceira recuperação que se fazia. Ainda foi um salão de chá, mas não era um projecto sustentado, não tinha carisma, nem clientes. E é importante para Matosinhos ter um restaurante assim a funcionar, numa casa tão linda, arquitectonicamente tão única. Isto é único no mundo, de um grande arquitecto do nosso país. Portanto, investimos, delineámos o que queríamos fazer, e nunca perdemos o norte, trabalhando sempre com a mesma consistência. Merece a casa, merecemos nós, merece o arquitecto, merece Matosinhos e o Porto.

É feliz aqui?

Sou muito feliz aqui. E em todos os meus restaurantes.

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