Música, Folk, Márcia
©Manuel MansoMárcia
©Manuel Manso

Entrevista Márcia: "A música é o meu divã"

Márcia tem aquele talento – mais raro do que se supõe – de partir da sua intimidade para criar objectos de valor universal. E ao quarto álbum, a escritora de canções expõe-se mais do que o costume.

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Márcia a olhar para o cd:

Isto ainda faz sentido?
Faz.

Qual?
Sem isto, para mim, era como se o disco não existisse. É importante o suporte físico.

Sem isto não há noção de obra, de todo?
Fica disperso. É como a quantidade de fotografias que tens no iphone, a quantidade de conversas que tens no email, no whatsapp. Consegues ter dez conversas ao mesmo tempo em janelinhas. Acontece-me, reconheço, não consigo não responder… isto é mais saudável.

Os objectos são saudáveis?
Não os objectos, não… sou desprendida dos objectos. Mas como artista - não só como cantora, eu vim das Belas Artes, fiz Pintura, fiz Desenho - o material físico é importante…

O analógico.
Sim. Senão, às tantas, é tudo muito virtual.

Como é que as Belas Artes e o Cinema, que também estudaste, te influenciaram?
Fiz um documentário muito pessoal, que se chamava Mana, precisamente sobre a minha irmã. As pessoas desconfiaram: que disparate isto não vai ter piada nenhuma. No final acabou por ser uma surpresa, toda a gente acabou por adorar o documentário. E aí percebi que talvez o meu caminho era falar do meu universo íntimo.

E as artes plásticas?
Eu habituei-me muito a evadir-me dos sítios onde me sentia aborrecida. Foi assim que comecei a fazer pintura e foi assim que comecei a fazer música. Em ambos os casos a mesma matriz...

Imaginar cenários.
Isso, imaginar que estou noutro cenário. Um prazer no outro sítio onde não estou.

Neste disco há uma sensação transversal de sentimentos de medo, de perda…
Talvez medo da perda...  

Isso. Ora, não quero presumir sobre a tua vida, mas não parece coisa que estejas a viver isso agora. São cenários imaginados?
O medo da perda é real, é meu.

Não vamos fazer psicanálise a ouvir o disco, mas…
(ri-se) Nunca sei qual é o limite da intimidade numa entrevista… a minha privacidade está nas minhas canções. E então aqui, em entrevista, talvez a única hipótese seja entrar na intimidade.

Ok, estou pronto.
Cada canção não é autobiográfica de forma directa. Tento ser metafórica, foi assim que aprendi a desabafar. Sou emocional a escrever. Falo da emoção, da sensação, não da situação. Nesse sentido é muito autobiográfico. Conheço todas as sensações que escrevi até hoje, não as inventei.

Conto aqui oito temas na primeira pessoa e quatro na segunda, a falar para o outro...
Deixa-me ver (olha o alinhamento do disco). Pois, começa aqui com o “Corredor”. É a minha canção de desdém, não posso dizer para quem escrevi (ri-se)... mas escrevi para uma pessoa que me decepcionou. Uma música mais agressiva, com desdém. Eu também sinto desdém…

Achas que toda a gente a vê assim como uma pessoa doce e fofinha?
É. Ninguém é só doce. É perguntar aos meu músicos e vais ver (ri-se). E aqui apareceu esta canção e decidi assumi-la com a devida energia que a música pedia. Depois temos… (volta a consultar o alinhamento). Tem graça! Acabaste de me mostrar que eu tenho não um, mas três canções de despeito. “Corredor”, “Manilha” e “Emudeci”. Ainda por cima seguidas. Nunca me tinha apercebido. Cada entrevista é uma sessão de auto-conhecimento.

Isto é conversa de divã.
(risos). É. Mas eu gosto disto… Acho que sempre tive essa coisa na minha escrita: decepcionaste-me, vou em frente.

Só se consegue escrever sobre decepção ou perda quando já se está a ultrapassar?
Que boa pergunta… isso põe-me a pensar… já precisávamos de um divã, de facto (ri-se). Acho que essa sensação da decepção só chega quando investi muito numa relação. Só te desiludes porque te iludiste. Mas nesse momento há um corte drástico. Acabou. A música ajuda-me a revelar isso. A música é o meu divã.  

Todo o disco é atravessado por muito silêncio, por uma certa aversão ao ruído…
Totalmente verdade... Eu tenho essa aversão. Participo muito nas misturas, retiro muita coisa, às vezes para tristeza de quem trabalha comigo. Quero clareza, depuração. Eu trabalho isto mesmo para ser ouvido. E este disco teve um tempo de maturação muito grande, por razões pessoais, muitas intempéries que fizeram com que a coisa atrasasse.

Salvador Sobral, António Zambujo, Samuel Úria: só convidaste gente que sussurra bem…
(Ri-se). É verdade. Sinto que é tudo gente com a mesma aversão ao ruído. Com todos gravei as vozes ao mesmo tempo. Nada de um e depois o outro. Chamo as pessoas por achar que fazem sentido naquele lugar comigo.

Por falar em lugar, Lisboa é a tua cidade de sempre. Como a vês hoje?
A Baixa está insuportável de ruído. Um sítio totalmente poluído, em termos sonoros, visuais. Por outro lado, quando passo lá penso: “fogo! Fiz aqui o curso há dez anos nas Belas Artes e não havia nada disto, esta movida, esta vida. E isso é bom. Tudo tem o seu lado bom e o seu lado mau. Portugal teve um salto positivo nos últimos quatro anos…

Isso é um quase uma declaração de apoio político...
Então não escrevas, não quero isso (ri-se). Mas não é tanto a isso que me refiro. Nós éramos lixo e passámos a luxo. A nossa vida mudou muito. E não é tanto de política que falo… ou melhor, há política em tudo o que fazemos, tomada de posição… por exemplo, acho incrível ver cada vez mais pessoas a recusar usar plástico ou a usar mais bicicletas...

Estás optimista.
Acho sempre que o futuro vai ser melhor. Quando vês a desgraça que está prestes a acontecer no Brasil (a eleição de Bolsonaro, que entretanto aconteceu), acho sempre que depois há-de ser melhor. Temos de passar más fases, atravessar a tempestade. Sou optimista ao ponto de me achar ingénua.

O mundo melhora?
Não todo o mundo. Este mundo em que vivemos. Depois penso nos refugiados e não sou nada ingénua… acho que aquilo não vai melhorar. E isso é triste, é um apartheid nojento. E hoje as pessoas - as pessoas boas, decentes - sentem uma enorme culpa. A culpa de estarmos a viver bem, neste canto do mundo confortável. O que também não é justo…

Sentes essa culpa na tua música? Que devia ter mais intervenção política?
Não, nada. Para já porque me exponho muito em termos políticos. Não há muita gente a ser embaixadora para a integração (nomeada pelo Alto Comissariado para as Migrações em 2015), a fazer campanha activa todos os dias nas redes sociais, na rua com quem converso. Mas não sinto responsabilidade de pôr isso na minha música. Nem acho que tenha jeito para isso.

No single “Tempestade” não há um pouco disso?
É uma canção mais aberta à interpretação. Vejo muito os meus filhos aí. Tem uma cor de esperança no que estava por vir, no futuro. Sei que estava a escrever para eles, como uma espécie de conselho. Não te esqueças dos outros, guarda sempre uma coisa boa de cada dificuldade que tiveste, mas não queiras ir sozinho, não deixes os outros fora da mesa enquanto comes sozinho.

Já é um apelo à acção...
Pode ser. Mas não vai além disto. Sinto necessidade de fazer alguma coisa, não sinto que a minha música tenha de ter alguma coisa a ver com isso. Acho que tens de reconhecer que não podes mudar o mundo e que está tudo mil anos de onde deveria estar. Mas se há uma coisa ao teu alcance para fazer, faz já. E isso é o efeito borboleta que temos no mundo.

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