A luta fora dos palcos
Desde o início da pandemia que os trabalhadores da cultura se têm vindo a mobilizar, talvez mais do que nunca, em várias acções de reivindicação por melhores condições de trabalho, por apoios de emergência e a longo prazo, por uma legislação laboral adequada a estas profissões, por um Governo que reconheça verdadeiramente a cultura como um bem essencial e como o direito constitucional que é, lado a lado com a educação e a saúde.
Vários grupos – formais e informais, históricos e recém-nascidos – começaram a encetar um diálogo mais articulado e concertado entre si, amplificando a voz do sector, unindo lutas, estabelecendo pontes entre os contextos e as realidades múltiplas que caracterizam o tecido artístico português. Um dos grupos que despontou com esta crise e que tem estado na linha da frente deste movimento pela cultura é a Acção Cooperativista, responsável pela guerrilha viral #Unidxs Pelo Presente e Futuro da Cultura em Portugal. Reúnem, até à data, quase seis mil membros, de várias áreas: teatro, cinema, música, dança, performance, circo, ópera, artes plásticas, artes visuais, bibliotecas, literatura, fotografia e videoarte, entre outras. “É um colectivo verdadeiramente transversal”, afirmam Teresa Coutinho e Ruy Malheiro, do núcleo duro da Acção Cooperativista, ambos actores. “De salientar ainda a colaboração de inúmeros mediadores, como jornalistas, formadores e um considerável número de membros da sociedade civil.”
Este grupo informal pratica “uma metodologia de trabalho colaborativa, não-hierárquica e que procura unir os trabalhadores das artes e da cultura em Portugal, valorizando a diversidade”. Na palavra ‘cooperativista’, dizem, encontram-se as duas “palavras-chave da identidade” deste colectivo: cooperativa + activista. A sua missão passa por vários degraus de partilha e colaboração, “desde o apoio ao nível mais elementar à partilha de informação útil e conhecimento especializado, até ao abrir espaço para pensamento e debate, sempre tendo em vista a acção”. Essa acção implica estreitar o diálogo com o Ministério da Cultura, criando “as condições para operar ao nível da mediação entre o sector e a tutela, ambicionando um paradigma de políticas cada vez mais participativas”. E para Teresa Coutinho e Ruy Malheiro, a Acção Cooperativista, em cooperação com outras estruturas, tem contribuído, “sem sombra de dúvida”, para que o Governo reveja as suas políticas no que toca à cultura e seus trabalhadores.
“Acreditamos que se algumas medidas foram e têm sido tomadas é graças à pressão exercida pelas estruturas representativas do sector, formais e informais”, assinalam, referindo que o pacote de medidas mais recente é “resultado” desta mobilização. “A verdade é que, desde o início da crise pandémica, entre paragens ou falsas retomas de actividade, as estruturas nunca cessaram a sua reivindicação e a análise objectiva do momento presente, apesar da comunicação tantas vezes mentirosa e propagandística do Governo e do Ministério da Cultura, que visa manipular a opinião pública e descredibilizar as sucessivas chamadas de atenção dos trabalhadores para a precariedade agravada em que se encontram.” A ausência de uma “visão estratégica” e estrutural do Governo para a cultura já vem de trás, defende a Acção Cooperativista – desde a “falta de políticas públicas” à “falta de apoios sociais aos trabalhadores”, a maioria deles precários, passando ainda pela “inexistência de um mapeamento do tecido cultural português”. Tudo isso ficou a descoberto com esta crise. “Estava tudo por fazer”, resumem Teresa Coutinho e Ruy Malheiro.
Em relação às medidas anunciadas a 14 de Janeiro pela ministra Graça Fonseca, a Acção Cooperativista aponta várias falhas. “Apesar de estarmos perante um momento histórico no que concerne algumas destas medidas – nomeadamente o resgate, no concurso da DGArtes, de muitas candidaturas que tinham ficado sem apoio – o importante é entender o que é que esta injecção de dinheiro vem provar: a insuficiência da dotação orçamental destinada a este concurso e, de forma mais abrangente, à cultura e às artes”, afirmam os actores. “É ainda de ressalvar que as resoluções relativas à DGArtes resolvem apenas os problemas de uma pequena parte da produção cultural, afecta a estes apoios.”
No que toca aos apoios sociais, dizem, “continua a não estar garantido um apoio acima do limiar da pobreza a todas as pessoas que dele precisam”, o que conduz “sistematicamente à precariedade, à informalidade e ao endividamento” dos trabalhadores. “As medidas de aumento das quotas da música na rádio, por exemplo, são pouco mais do que simbólicas para os profissionais da área da música, visto não abrangerem a totalidade de músicos portugueses. No fundo, continua a ficar gente de fora e, às dificuldades do momento presente, somam-se dez meses de profundas limitações das actividades culturais e de falta de apoios.”
A precariedade que vem caracterizando este sector torna-o especialmente frágil numa altura destas, e os mecanismos de apoio nem sempre têm em conta esta realidade.
— Joana Gomes Cardoso, presidente da EGEAC
Ricardo Alves, encenador e director artístico da companhia Palmilha Dentada, partilha a mesma opinião. “Estas medidas foram positivas, mas têm um problema que já vem de trás, que é o Estado encarar a cultura como os parceiros da DGArtes, especialmente no caso das artes performativas”, observa. “Há uma série de grupos que não entram nessa lógica. A realidade é que a cultura é feita de muito mais coisa que está completamente parada, sejam os grupos que tinham uma sobrevivência à base da bilheteira dos seus espectáculos, os que faziam espectáculos nas escolas e os muitos que já tinham perdido esperanças na DGArtes.”
No meio deste cenário cataclísmico, a Palmilha Dentada, curiosamente, não se pode queixar. Pela primeira vez, esta pequena estrutura teatral do Porto, que tem sobrevivido sobretudo graças a um público fiel, teve acesso aos apoios da DGArtes. No ano passado conseguiu o apoio de emergência, agora vai ter o apoio bianual ao qual concorreu, na sequência da operação de resgate das candidaturas. Contudo, Ricardo Alves não olha só para o seu umbigo. Mostra-se apreensivo com o futuro e com o quão “danificado e fragilizado” poderá ficar o tecido criativo e laboral da cultura. “Por isso digo que 2021 deve ser o ano de repensar e de reestruturar, tanto no que diz respeito às acções do Governo central, das autarquias, das empresas de mecenato.”
Para a Acção Cooperativista, este segundo confinamento generalizado irá agravar a situação já precária e vulnerável dos trabalhadores. “Este novo confinamento traz novamente os reagendamentos sucessivos de actividades e os seus cancelamentos, que não têm sido alvo de uma fiscalização eficaz e real na aplicação do Decreto-Lei 10-I/2020 de 26 de Março”, alertam. “Assim, não só as apresentações, mas todos os trabalhos de criação, formação, mediação e contacto com os públicos podem ficar por pagar. Para que fique claro: o pagamento destas actividades deve ser a 100%.” Além disso, os equipamentos culturais – que já tinham as suas agendas sobrelotadas com a programação dos espectáculos reagendados aquando do primeiro confinamento – “vêem-se agora a braços com a reprogramação desses mesmos eventos e dos que estariam programados originalmente para 2021”.
Se continuarmos a achar que isto é um problema para os artistas e meia dúzia de iluminados resolverem, vamos ficar cada vez piores enquanto sociedade.
— Ricardo Alves, director da Palmilha Dentada
Joana Gomes Cardoso, presidente do Conselho de Administração da EGEAC, empresa municipal que gere os equipamentos culturais de Lisboa, considera que o circuito artístico da capital vai sofrer danos por causa da crise pandémica e de todos os seus efeitos colaterais. Porém, espera que estes não sejam irreparáveis. “Já são conhecidas várias ‘baixas’ decorrentes da pandemia: livrarias que fecharam, por exemplo. Mas esperemos que seja possível retomar a actividade cultural de Lisboa em moldes mais equitativos e sustentáveis.” Para Joana Gomes Cardoso, todos os campos artísticos “têm sido muito atingidos”.
“A precariedade que vem caracterizando este sector torna-o especialmente frágil numa altura destas, e os mecanismos de apoio nem sempre têm em conta esta realidade”, destaca, mencionado “a existência de dívidas que impedem os agentes culturais de se candidatarem” a apoios. A EGEAC não tem nas suas competências a atribuição de apoios no sentido convencional – ou seja, “não detém um programa ou uma bolsa financeira de apoio” –, mas é uma peça importante no puzzle do tecido cultural lisboeta, já que produz e promove espectáculos de teatro e dança, exposições, concertos e edições, entre outras actividades. A presidente do Conselho de Administração da EGEAC refere que a Câmara de Lisboa “lançou várias linhas de apoio que são complementares à actividade promovida pela EGEAC”, reconhecendo que “ambas são fundamentais nesta altura”. “É em Lisboa que estão sediadas muitas das companhias e entidades culturais do país. Há assim uma responsabilidade especial, embora a tutela da área esteja com o Ministério da Cultura.”
Para um futuro mais justo, sólido e sustentável – que, insistem os intervenientes, terá de passar por um reforço significativo da dotação orçamental para a cultura –, Ricardo Alves defende que, a nível macro, é urgente pensar e encarar a cultura como algo “tão importante como o Serviço Nacional de Saúde e a educação”. “É a cultura que nos protege de uma data de fenómenos a que assistimos cada vez mais. É a aprendizagem da empatia, do olhar o outro, que a cultura nos dá e que nos faz muito falta enquanto civilização”, nota o encenador. “Se não pensarmos nisto como um todo, a diversos níveis, e continuarmos a achar que é um problema para os artistas e meia dúzia de iluminados resolverem, vamos ficar cada vez piores enquanto sociedade.”