Bem-vindo a um arquivo sem-fim de livros, monografias, fonogramas, incunábulos, periódicos e muito, muito mais. Temos museus e recantos municipais, espaços que nos fazem recuar à época medieval e outros que ainda cheiram a fresco. Apresentamos algumas das melhores bibliotecas em Lisboa para pôr na sua lista de “próximos locais a visitar na cidade”. Resta-nos desejar boas leituras a todos os bibliófilos desta Grande Alface. Ah, se ainda está a pensar na palavra “incunábulo” aqui vai uma pequena ajuda: trata-se de um livro impresso nos primórdios da imprensa, com recurso a tipos móveis.
Investigadores, professores, estudantes e curiosos conhecem os meandros da Biblioteca Nacional de Portugal, que tem por missão preservar a cultura portuguesa. Mas os de acesso público, das salas de leitura às salas de exposições – uma pequena parte de um mundo recheado de livros, códices, papiros, pautas e até objectos muito pouco literários que aqui chegam à boleia de espólios doados. No edifício inaugurado em 1969 no Campo Grande, um projecto do arquitecto Porfírio Pardal Monteiro, há preciosidades à vista de todos, como os arranjos interiores da Sala de Leitura, assinados pelo designer Daciano da Costa, também responsável pelas instalações do anfiteatro. Mas há mais longe da vista – e desconfiamos que não chega uma vida para abrir todas as gavetas, percorrer todas as prateleiras ou abrir todos os cofres.
Leu bem, cofres – a biblioteca administra o Depósito Legal, ou seja, os responsáveis pelas publicações são obrigados por lei a enviar cópias para este depósito que está sempre em expansão. E é uma máquina bem oleada. Principalmente após as obras de ampliação que ocorreram há cerca de dez anos na Torre de Depósitos, onde nove dos 11 pisos albergam as colecções do Fundo Geral e de Reservados. Em cada um deles, há um acesso a um pequeno elevador que transporta as requisições para a Sala de Leitura. Entrámos num elevador, mas para pessoas, que nos levou ao quarto piso, morada dos bastidores das Ciências Sociais e Belas-Artes.
Aqui testemunhamos várias tarefas de várias pessoas. Ora tratam dos pedidos da Sala de Leitura com a ajuda de um sistema de sinalização sonoro e visual, ora levam a cabo trabalhos manuais de acondicionamento das capas dos livros, com a ajuda de capas extensíveis, adaptadas a vários formatos. E é por tamanho que estão organizadas todas as publicações, por razões de economia de espaço. A acompanhar as folhas dos livros bem arrumados nas prateleiras, saltam marcadores coloridos que indicam se estão em mau estado, se são mais antigos e por aí fora. Algumas peças mais raras, que requerem cuidados especiais e estão microfilmadas ou digitalizadas, já não descem à Sala de Leitura, salvo raras excepções. Quando isso acontece, o livro é levado até aos chamados “Lugares Q” (na fila Q), mais próximos do balcão, para salvaguardar a integridade de preciosidades e obras em fase de conservação.
Voltamos ao elevador, desta vez para descer até ao piso dois, partilhado pelas áreas da Música, Cartografia e Iconografia. No departamento musical, existe uma pequena sala de leitura e um piano electrónico com auscultadores – é que apesar do tema, também aqui o silêncio é de ouro. Estamos na casa da maior colecção de música de Portugal, que remonta ao século XVIII e inclui documentos raríssimos. Uma das obras mais representativas da colecção está também ligada à história de Lisboa: a partitura manuscrita integral da ópera Alessandro nell'Indie, de David Perez (adquirida em 1971 ao maestro Ivo Cruz), estreada a 31 de Março de 1755 na Teatro Ópera do Tejo, um edifício desenhado pelo arquitecto italiano Bibbiena que ruiu poucos meses depois, com a força do grande terramoto.
As áreas de Cartografia e Iconografia não ficam nada atrás da de Música, ou não cuidassem de tudo o que é imagem, desde selos até peças com mais de dois metros de altura. Está tudo dividido por temas, dos mapas aos postais ou cartazes, e também por tamanho. Abre-se uma gaveta e lá estão postais do início do século, como um que revela um Campo Grande em 1904, ou mais “recentes” como um de Fátima, de 1953. Noutra sala, numas gavetas maiores, encontramos cartazes históricos, com destaque para os que fazem alusão à I Guerra Mundial, uma das colecções disponíveis no site da Biblioteca Nacional Digital. Na Cartografia guarda-se, por exemplo, o primeiro mapa de Portugal impresso (1561), feito pelo cartógrafo Fernando Álvares Seco; enquanto que à Iconografia pertencem gravuras com planos de batalha do século XVIII. No mesmo piso, encontramos as áreas de impressos e de manuscritos.
À guarda dos Impressos estava o primeiro livro impresso em língua portuguesa, com data: 8 de Agosto de 1498. É o Tratado de Confissom e o único exemplar conhecido deste tesouro nacional que está sempre guardado na casa forte da biblioteca, junto de outros exemplares com valor patrimonial. Está digitalizado, com acesso público, aqui. Neste depósito são tratados os livros antigos impressos, desde meados do século XV até cerca de 1800, e presta-se ainda apoio à equipa dos manuscritos, que funciona muito perto. Foi aí que conhecemos outro tesouro português: O Livro da Fábrica das Naus, escrito à mão pelo próprio autor, Fernão de Oliveira, um erudito prático/teórico da arte naval. Um livro que foi objecto de restauro, durante o qual se descobriram 13 folhas adicionais que estavam coladas de propósito, já que o papel era um bem escasso na altura. Ao serem desempastadas, foram reveladas diferentes versões do texto, pequenas emendas e até uma dedicatória a D. Sebastião. A peça pertence à Colecção de Códices da biblioteca, composta por 13.500 códices e uma colecção de avulsos com 261 caixas, onde são acondicionados manuscritos. Aqui se guarda, por exemplo, a Colecção Pombalina, que inclui o arquivo pessoal do Marquês de Pombal e documentação relacionada entre os séculos XV e XIX.
Estava na altura de irmos conhecer a área de Conservação e Restauro. Descemos ao piso de entrada. Aqui, num verdadeiro hospital dos livros, tudo é preservado, seja antigo ou moderno. Desde a encadernação de biblioteca, mais resistente, porque a preservação passa muito por um bom acondicionamento, até ao restauro de documentos antigos. Assistimos ao tratamento de documentos manuscritos em tinta ferrogálica (à base de ferro) da Colecção Pombalina, que estão a ser preparados para a digitalização, nomeadamente a consolidação de páginas danificadas por fungos. Sobressaem os tratamentos num tanque onde se fazem lavagens com uma solução aquosa e numa máquina que funciona quase como fabrico de papel. Aí, são preenchidas as lacunas das páginas com uma solução especial, um procedimento que não é considerado restauro, uma vez que o objectivo é salvaguardar a informação existente para depois digitalizar.
Uma vez tratado o miolo dos documentos, passa-se à costura, onde uma profissional cose os livros seguindo os mesmos métodos da encadernação original. Mesmo ao lado vimos um par de chinelos de quarto, que não vieram parar aqui por acaso: fazem parte do espólio do poeta Jorge de Sena, doado pela Fundação Gulbenkian à Biblioteca Nacional, e que integra objectos que nada têm a ver com documentação.
Embora todos estes bastidores não estejam abertos ao público, a Biblioteca Nacional costuma albergar entre cinco a seis exposições em simultâneo, e gratuitas, produzidas por investigadores a partir das colecções que aqui se guardam. Até 23 de Abril, pode ver a mostra “Bibliotecas limpas: censura dos livros impressos nos séculos XV a XIX” e “Mário Domingues. Anarquista, cronista e escritor da condição negra”, até 28 de Março. Algumas das janelas para estes bastidores, que são de todos nós.
Campo Grande, 83. Seg-Sex 09.30-19.30, Sáb 09.30-17.30.
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