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Estamos em Abril e a “fase Charlie” ainda vem longe, mas já é certo que este será um ano calamitoso para as florestas. É que os incêndios são apenas uma das ameaças às áreas florestais: as biografias e memórias políticas não são menos destrutivas
Em Fevereiro surgiram as 592 páginas de Quinta-feira e Outros Dias, de Aníbal Cavaco Silva, revelando todos os ressabiamentos, mofinezas, ajustes de contas e gabarolices que não tinham tido cabimento nos dez (dez!) volumes de Roteiros, de carácter institucional e reservados à reprodução de discursos e intervenções formais. É de realçar que toda esta massa de papel diz respeito apenas ao cargo de Presidente da República, pois as intervenções de Cavaco Silva como Primeiro-Ministro já tinham produzido obras-primas como Cumprir a Esperança (1987), Construir a Modernidade (1989), Ganhar o Futuro (1991), Afirmar Portugal no Mundo (1993) e Manter o Rumo (1993). E é preciso não esquecer obras “avulsas”, como Crónica de uma Crise Anunciada, de 2002 (um “eu tinha avisado!” com título que alude a um romance do “colega” Gabriel García Márquez) e os dois volumes (356 + 528 páginas) da Autobiografia Política (2002 e 2004).
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Para termos o retrato completo da presidência de Aníbal Cavaco Silva, só falta que Maria Alves da Silva Cavaco Silva (é mesmo assim, com um “Cavaco” ensanduichado entre dois “Silva”) nos faça a relação de quem, entre as visitas do Palácio de Belém, subtraiu uma colher de sobremesa do faqueiro presidencial e não devolveu os tupperwares e nos elucide sobre a dieta dos pavões.
Como se este panorama não fosse já “dantesco” – para usar o adjectivo favorito dos media entre Junho e Setembro – Quinta-feira e Outros Dias, cujo conteúdo deveria em princípio, ser de escasso interesse para quem não seja jornalista político, comentador televisivo ou politólogo, esgotou instantaneamente a primeira impressão e tem vindo a ser alvo de sucessivas reimpressões, estando há semanas confortavelmente instalado nos primeiros lugares das vendas de não-ficção, à frente dos habituais livros de dietas e auto-ajuda e de uma enxurrada de títulos sobre Fátima, cuja leitura conjunta seria penitência mais dura do que ir de joelhos de Vladivostok até à Cova da Iria. Aparentemente, o apetite por detalhes da pequena política não foi saciado com o best-seller Eu e os Políticos, de José António Saraiva, que já consumira ingloriamente muitos hectares de eucalipto no final de 2016.
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Ainda no infausto mês de Fevereiro, todos os que tinham lido as 1064 páginas do 1.º volume de Jorge Sampaio. Uma Biografia (2012), de José Pedro Castanheira, e não tinham entrado em coma profundo, puderam regalar-se com o 2.º volume (mais 1064 páginas), que cobre o período que se inicia com a conquista da Câmara Municipal de Lisboa, em 1989, e tem como parte mais “suculenta” a presidência da República. Ora, ser Presidente da República Portuguesa em 1996-2006 não é o mesmo que ser Primeiro-Ministro do Reino Unido durante a II Guerra Mundial e receber-se da Guiné-Bissau a Ordem Nacional das Colinas do Boé e ser-se convidado para discursar na cerimónia de encerramento de um encontro da Confraria do Azeite não é o mesmo que gerir a evacuação de Dunkerque ou decidir o desembarque da Normandia e enfrentar Pedro Santana Lopes não é o mesmo que enfrentar Hitler, pelo que a trepidante presidência de Jorge Sampaio poderia, sem esforço, ser compactada num livrito de bolso de 50 páginas.
Mas a devastação da floresta portuguesa conheceu esta semana mais um rude golpe, com a publicação de Relatório de Combate, 845 páginas de memórias políticas de Alberto João Jardim, redigidas no “estilo directo e franco” [sic] que lhe é peculiar e que todos os portugueses conhecem bem.
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O prefácio, encomiástico, é de Luís Miguel Jardim, director do Arquivo Regional da Madeira, cargo para o qual foi nomeado em 2012 por... Alberto João Jardim. Luís Miguel Jardim é também o realizador da longa-metragem O Feiticeiro da Calheta, apresentada ao público em Março passado (mas, hélas, ainda sem data de estreia prevista no “continente”). O filme centra-se na figura de João Gomes de Sousa (1895-1974), poeta popular analfabeto, que ficou conhecido como “Feiticeiro da Calheta” e a quem é creditada a autoria dessa jóia literária e musical que é o “Bailinho da Madeira” (seria mais justo o cognome de “Cole Porter da Calheta”). O filme conta com a participação de Alberto João Jardim, no papel de “pastor visionário” que sonha com um futuro em que as crianças madeirenses terão “melhores condições de vida” (e também auto-estradas supranumerárias e marinas sem embarcações). Faltou a Luís Miguel Jardim a audácia para, em vez desta pequena rábula dentro do filme, ter concebido um biopic inteiramente devotado ao Grande Político que concretizou o sonho do Humilde Pastor.
Como se não bastasse aos políticos tomar conta do espaço público durante as campanhas eleitorais e durante o exercício dos cargos, entrando todos os dias, durante décadas a fio, pela nossa casa dentro, com o seu pífio repertório de inanidades, lugares comuns, respostas evasivas e proclamações grandiloquentes, e, quando nos julgávamos livres de vez da sua molesta presença, regressam para assombrar as livrarias, a pretexto de nos prestar contas e dar “público testemunho de componentes relevantes da minha magistratura que são, em larga medida, desconhecidos dos cidadãos” (Cavaco Silva dixit).
E assim vai o coberto vegetal do país: a floresta encolhe, convertida em dezenas de milhares de cartapácios soporíferos, mas proliferam jardins e silvas. E não há Kamovs, Canadairs e equipas de sapadores-florestais que nos valham contra este flagelo.