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A melhor definição de Dylan é do próprio Dylan e apareceu há dias, no excelente perfil de Leonard Cohen que a New Yorker publicou a propósito do seu último disco, You Want It Darker.
Dylan tinha comprado uma nova propriedade na zona de Los Angeles e queira mostrá-la a Cohen. Às tantas, na conversa ao volante, sai-se com esta: “Para mim, Leonard, tu és o Número 1. Eu sou o número Zero”.
O número Zero. Dylan tem um dos mais desconcertantes sentidos de humor – as obras-primas da segunda metade da década de 60 são, também, obras-primas do humor, da (auto)ironia –, e é também uma das personalidades mais desassombradas da nossa época. Nele, cruzam-se o herói e o anti-herói, estatutos que o próprio se vai encarregando de desmentir, de certa forma confirmando assim esses mesmos estatutos.
Coincidência do destino, o Nobel chegou-lhe no dia do desaparecimento do Nobel da Literatura cuja distinção gerou mais polémica nos últimos anos – Dario Fo, o dramaturgo e agitador que os mais tradicionalistas consideravam ser pouco merecedor do Nobel da Literatura. Talvez as mesmas vozes que agora hesitem entre o espanto e a indignação.
Evitando parafrasear Dylan sobre as mudanças e os tempos que mudam, não há como evitar reconhecer que alguns dos comités Nobel estão em franca mutação de critérios. Isso é bem evidente nos galardões da Paz, em que o prémio tem sido atribuído a personalidades e entidades no activo e no calor da acção, como se o Nobel constituísse um verdadeiro incentivo, como aconteceu este ano com o Presidente da Colômbia.
Na Literatura, o comité tem vindo a mostrar-nos nos últimos anos a latitude do conceito, preferindo autores quase desconhecidos e muitas vezes nas margens da Literatura.
Claro que a obra de Dylan tem cunho literário e há décadas que é estudada nas universidades americanas. Dessa forma, estamos perante Literatura, Literatura a sério. Dylan é um dos raros casos em que as letras das canções – as canções têm “letras”… – são mesmo poemas. Poemas.
Mas o Nobel deste ano, e mais uma vez no formato em que o comité o tem vindo a desenrolar, ultrapassa largamente as fronteiras da Literatura. É uma distinção de carreira, de Obra, em maiúscula e sentido lato. Dylan recebe o galardão certamente pelos poemas que escreveu – esqueçam as fracas tentativas de obra literária isolada das canções –, mas também pela revolução que foi a sua música (o tempo verbal não é aqui inocente) e pelo seu papel na revolução permanente dos tempos que temos vivido. O herói e o anti-herói.
Recorrendo à mesma desfaçatez com que Dylan se autoclassifica, permito-me uma autocitação de um dos textos que sobre ele escrevi para a Time Out, a propósito do disco Tempest, (2012): “Falamos do homem que, há cinco décadas, estabeleceu cânones, não apenas na música, mas na cultura tal como a entendemos no sentido mais lato.” Não sei se o comité Nobel leu este texto antes de atribuir o prémio. Mas acho que era mais ou menos isto que eles queriam dizer.