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Em Dança Doente, para ver sexta e sábado no Maria Matos, Marcelo Evelin mergulha no universo do mítico (ou místico) coreógrafo japonês Hijikata Tatsumi.
Frio. Está frio. E um plantel de corpos estáticos, vagamente lapidificados, aparenta querer descongelar. Degelo provocado por um som industrial, bruto, que aqui serve a função de motor de um dominó estragado, nada ordeiro, que começa gradualmente a ocupar outros cemitérios. Em Dança Doente, espectáculo que o coreógrafo brasileiro Marcelo Evelin traz ao Maria Matos esta sexta e sábado, somos íntimos da morte. Até à morte.
De resto, há uma exaustão que coincide com a motivação de Evelin para este espectáculo. O coreógrafo – que já apresentou em Portugal Ai, Ai, Ai; Matadouro; e De Repente Fica Tudo Preto de Gente – atira-se, em Dança Doente, para um fascínio com o Japão, que o fez embater na obra do coreógrafo mais provocador de sempre nesse país: Hijikata Tatsumi. Criador do estilo butoh (onde o corpo é enfermo e desprovido de vontade e controlo), Tatsumi foi essencial na mudança de paradigma das artes cénicas japonesas, com uma ousadia que rompia com o tradicional, com a versão mais popular.
Evelin, ainda assim, despacha-se a esclarecer: “Não é uma peça sobre butoh, aquilo que me interessa é o universo do coreógrafo, o trabalho em cima da escuridão, um corpo que não é perfeito, uma dança que é eficiente, que é uma dança de poder, mas muito mais de fragilidade e de desestabilização. Acho que para fazer uma peça sobre o Vaslav Nijinsky não precisa de ser ballet”, explica.
Há uma performer que está praticamente vinte minutos imóvel, há outros dois que dançam no chão quase todo o espectáculo, há nus, há figurinos que provocam ecos de ancestralidade nipónica, ou pelo menos oriental, há, se não tudo, bastante. Isto é, o artista brasileiro preocupou-se em criar várias hipóteses, microenredos paralelos para onde o espectador se pode virar.
Tudo isto com uma tarja preta suspensa no palco que nos tapa a percepção, como uma venda que só nos permite ver o chão, neste caso, muitas vezes, só nos permite ver os corpos às metades. Para Marcelo Evelin, é, provavelmente, uma montra de loja tapada: “Sempre trabalhei com máscaras na minha carreira. Aquela tarja preta é outra hipótese, queria mascarar o espaço, queria mascarar a possibilidade de viver de uma maneira consumista. Sinto que nós espectadores estamos formatados, como se entrássemos num shopping para comprar os novos sabonetes de que ouvimos falar. Não acredito que a arte possa ser assim, defendo que a arte tem que ser útil, não pode ser comestível nem digerível. Daí a tarja, para alterar a forma como as pessoas estão a ver”, comenta.
Dança Doente. Sim. É uma dança sem cura, que nenhuma enfermaria saberia diagnosticar, quanto mais curar. Aliás, quanto mais o som evolui – passa do industrial para o reino do espanta-espíritos e ainda a tempo de ir a Schubert – mais se intensifica esta infecção dos corpos, mais certeza temos: ninguém está aqui para se libertar. Sim, é como que uma condenação enraivecida, esbracejar em vão, sim, mas continuar a esbracejar. Continuar a morrer, que nem uma galinha que não está pronta para cair redonda no chão. “Quando cortam a cabeça a uma galinha ela tem algum tempo com movimentos espasmódicos, o Hijikata olhou para esse momento, uma galinha a fazer movimentos involuntários, e disse: ‘A minha dança é assim, é uma dança sem cabeça’. Foi isso que procurei”, diz. Esgueiremo-nos para esta capoeira.