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O eterno atraso da palavra

Escrito por
Miguel Branco
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"A Vertigem dos Animais Antes do Abate", do grego Dimítris Dimitriádis, estreia esta quarta-feira no Teatro da Politécnica, casa dos Artistas Unidos. A encenação é de Jorge Silva Melo, num mundo que adivinha um futuro onde o homem sucumbe à natureza e onde a palavra será sempre mais lenta do que aquilo que a faz existir

O casamento é que não. O casamento é funeral. Sugere Fílon (Américo Silva), eterno melhor amigo de Nílos (João Meireles). Esta malévola previsão – o medo que as coisas deixem de ser como são –, um diagnóstico digno de Dante, antecipa uma família destroçada, corrompida pelo incesto, prostituição, pela ausência de cânones relacionais, comandada pelo desejo carnal e pela demência.

Fílon, sobre o anúncio do casamento com Milítsa (Inês Pereira), pergunta a Nílos se quer saber a verdade, o que vai acontecer, e diz-lhe que no início vão ser felizes, ricos como quase ninguém é rico, dez filhos. Diz-lhe que a mais velha se vai matar, apaixadonada pelo pai e pelo irmão, diz-lhe que o mais velho (Emílio, interpretado por André Loubet) se vai meter com más companhias, acabando assassinado, diz-lhe que o segundo filho (Pedro Baptista) se vai enrolar com a mãe e por fim suicidar-se. Mal sabia Fílon o que estava a dizer. “A Vertigem dos Animais Antes do Abate”, do dramaturgo grego Dimítris Dimitriádis, estreia amanhã (13 de Setembro) no Teatro da Politécnica, com encenação de Jorge Silva Melo. E por lá fica até 28 de Outubro.

Um autor com ligação estabelecida com os Artistas Unidos, estrutura que há 12 anos editou três peças do mesmo. “Nessa altura, fiquei com esta peça na cabeça, mas é muito difícil para os actores porque não quero que interpretem de mais, não quero que eles sublinhem os muitos sentidos e complexidade disto.”, explica o encenador invocando qualquer coisa de ‘Édipo em Colono’ ou do ‘Cântico dos Cânticos’ nas palavras de Dimitriádis, que não lhe interessa assim tanto colocar a descoberto.

Por falar em descoberta, há que falar da tríade que tudo acompanha, em plena cena, numa espécie de peça paralela. São três sujeitos: A, B e C, interpretados por Pedro Carraca, Nuno Gonçalo Rodrigues e João Pedro Mamede. Mas não são três sujeitos quaisquer, ou por outra, até podem ser devido à ausência de nome e idade, mas não são meros espectadores. Eles testemunham, empregam a futurologia num discurso jurídico-filosófico, são “os apostadores”, esclarece Jorge Silva Melo, “apostaram que isto vai correr mal, tiveram a certeza, e estão vestidos como funcionários públicos, neles está escondida toda a violência da natureza, vão aparecer como moscas e motards violentos, são a lei, mas por trás desta lei está a brutalidade da natureza”.

Sim, são estes senhores que parecem provocar o súbito enriquecimento, uma casa modesta que vira palácio, um armário onde nascem vestidos que esta gente ainda não tinha vestido, e são os mesmos senhores que através da luxúria, esse mal danado, atiram esta família ao chão. E com ela vem a promiscuidade, a babel silenciosa que Fílon sugeriu há 20 anos, antes do casamento. Tanto Fílon como Nílos querem agora recuperar esse discurso aparentemente amaldiçoado, para que esta tragédia acabe. Só que Fílon, assolado pela vergonha, não se lembra.

O cenário são sofás e luzes, panos que às tantas transfiguram a realidade vigente, um pedido para que o “cenário fosse mais parecido com uma sala de ensaios do que com uma peça”, disse Jorge Silva Melo à cenógrafa Rita Lopes Alves. E é isso, preto, muito preto, pontuado com jogos de luz.

No fundo, é a palavra que aqui manda. Ou será o corpo? “O que Dimitriádis se interroga nesta peça é: quem somos nós homens que julgávamos dominar a natureza com a razão e com a lei e, que de repente, somos ultrapassados pela natureza que se desencadeia? O incesto é a lei, ou seja, nós proibimos o incesto coisa que na natureza não acontece e a partir daí começa a surgir a hipótese de a natureza voltar a dominar o logos. Ao sonharmos dominar a natureza, o que pensamos? Depois também há aquela coisa da riqueza absoluta e o domínio total sobre tudo e que num minuto desaparece”, explica Silva Melo.

A palavra, no entanto, não se extingue, fica, entranha-se. Fala-se sobre a lentidão da palavra, o tempo que a palavra leva para compensar o pensamento, ou as simples acções, o olhar. Coitada, da palavra, tão mais lenta que o corpo. “Sim, mas a peça não é lenta, chama-se a vertigem, e a vertigem é súbita, achei que era engraçado pedir aos actores que em vez de viverem a cena de uma forma muito profunda, que vivessem a velocidade e a vertigem de cada uma das cenas”, conclui. Toca a correr.

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