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... mas que convém conhecer. Segunda Vez é uma série literária que chega hoje à internet. Um capítulo por semana, sempre à sexta. Falámos com o autor Gaspar Trevo
Temos assumido que uma parte da nossa vida se passa na internet: temos a nossa vida social e a nossa vida virtual que, neste momento, até se confundem. Há muito que as séries já deixaram de ser privilégio exclusivo da televisão. Sobretudo esta que é uma série literária, com um capítulo por semana a sair sempre à sexta-feira. Hoje sai o primeiro. Segunda Vez, obra de Gaspar Trevo com ilustrações de Rui Lacas, explora uma Lisboa pós-apocalíptica, que todos gostaríamos de evitar. Ainda assim, mais vale estar prevenido. Falámos com o autor por e-mail. Eis o resultado.
Como resumiria esta história?
Segunda Vez é uma obra de ficção que recorre ao formato de série literária. Trata-se de uma distopia lisboeta, que imagina para a cidade um presente alternativo, pós-apocalíptico, em que o sol se tornou um perigo e a vida social se reorganizou em espaços confinados. Neste contexto, um mundo virtual promete a possibilidade de habitar de novo o planeta “restaurado”. Os protagonistas da história são seis jovens de 17 anos que têm de testar um novo protótipo dessa réplica. O que está em jogo, pois, é a capacidade de viver experiências reais num mundo falso.
Quando e como surge a ideia da Segunda Vez?
Segunda Vez nasceu como possibilidade de livro em 2010, numa praia. A ideia que lhe serve de motor é o desejo de voltar atrás, de corrigir erros, durante a adolescência. Embora nessa fase tudo esteja em aberto, é uma idade em que os acontecimentos parecem irreparáveis. Tudo é sentido de modo exponencial, há uma adesão absoluta às vivências: o mínimo passo em falso é um desastre irremediável. O que a obra faz em primeiro lugar é transpor a ânsia de reparação para o mundo virtual. O cenário de ficção científica surge, por isso, como metáfora ou prolongamento do mundo adolescente.
Tem algo de autobiográfico?
Julgo que todas as histórias são, em certa medida, autobiográficas. Posso afirmar que as minhas personagens principais têm todas um pouco do seu autor.
Qual a razão que o fez optar por este formato?
O formato de série literária não foi programado, mas resulta de um processo de escrita que se orientou naturalmente nesse sentido. Quando me apercebi de que a história podia funcionar em registo serial, limei um pouco o texto para o conformar em temporadas de episódios – termos por que opto por tornar evidente o carácter espaçado no tempo da publicação. Cada capítulo gira em torno a uma personagem e a uma vivência específica, que ecoa no mundo virtual. A acção nasce de uma sucessão de cenas vivas relativamente curtas e independentes.
A ficção científica é algo que lhe interessa?
É um género de que gosto, embora não seja um leitor voraz de ficção científica. Talvez a opção pela justaposição de cenas venha de tal interesse, penso ser um traço que me ficou da leitura de Philip K. Dick. Ainda que também caracterize o estilo de outros autores que admiro justamente pela economia de meios, como Machado de Assis, por exemplo.
O acesso é grátis. Como pretende ganhar dinheiro com isso? Ou não é o objectivo?
O site é gratuito, não espero ganhar nada com isto, e nunca tive intenção de mercantilizar o tempo que lhe dediquei, que foi muito. A publicação num site garante-me total independência, o que é muito importante para mim, e tem um lado lúdico inerente.
De onde vem o interesse pela ilustração?
Quando decidi que era para publicar na net, achei que seria uma mais-valia para o projecto associar-lhe um ilustrador. Tive há uns anos, no âmbito profissional, um encontro com o universo de banda desenhada. Então, e muito graças ao Amadora BD - Festival Internacional de Banda Desenhada, descobri alguns autores portugueses. O traço do Rui Lacas correspondia ao que eu procurava e por isso o contactei. Estou inteiramente feliz com esta extensão do universo criado, e já não consigo dissociar as minhas personagens dos desenhos dele, nem a minha Lisboa do cenário que ele criou.
Esta é a Lisboa que queria ter?
Uma Lisboa pós-apocalíptica? Certamente não! Mas é o cenário perfeito para uma história como a Segunda Vez. E para as personagens há uma beleza que persiste mesmo na desolação.
Como vê a Lisboa actual?
Vivo afastado de Lisboa há muitos anos, não quero julgar a cidade de hoje sem conhecer. Claro que me apercebo das alterações, e algumas preocupam-me. Por exemplo, até há alguns anos, Lisboa era um caso raro, uma capital europeia em que todas as classes sociais podiam viver no centro e noto que essa situação se vem alterando.
Que pontes estabelece esta história com a Lisboa de hoje?
É muito diferente. A Lisboa da Segunda Vez é um espaço inerte, de reclusão, uma cidade quase sem cenário e onde nada acontece. Acho até que as personagens ganham mais vida quando saem do centro habitado e percorrem espaços votados ao abandono. Não sei se isso terá a ver com a minha própria vivência de Lisboa. Não sendo lisboeta, vivi na cidade alguns breves anos da juventude. Foi um período algo mágico, mas não completamente realizado, um pouco flutuante. Mas a verdade é que também associo Lisboa a uma longa espera antes de conseguir ir para lá viver, e ao desejo sempre frustrado de a ela voltar. De modo que, apesar de tudo, e de forma algo ilógica, considero-a ainda hoje como «a minha cidade»: a minha cidade fantasma.