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A coreógrafa uruguaia apresenta Trilogia Antropofágica, três espectáculos que se aproximam da dança/performance sobre três obras cénicas brasileiras. Permanecer é já sexta e sábado no São Luiz Teatro Municipal. O segundo acto, Resistir, é apresentado dias 19 e 20 e o terceiro, Ocupar, fica para 23 e 24. Entrevistámos a criadora em pleno ensaio.
O seu percurso passa pela arte plástica e visual, bem como pela dança. Há uma ligação natural?
Até à universidade nada disto existia na minha vida. Mas quando comecei a estudar artes plásticas e visuais, apareceu o espaço, a profundidade, onde a dança e o vídeo se inserem. O plano para mim não dá, sofri muito na minha formação, por isso não pinto.
Então o espaço foi uma espécie de alívio.
Sem dúvida. E aquilo que me interessa profundamente nas artes performativas e no espaço cénico é a relação com o espectador, o acontecimento. Estamos todos aqui. E também o tempo, até do ponto de vista político, esse é o tempo que a gente está aqui. Esta noção de acontecimento é sempre o outro, tem que ser sempre o outro.
O embate com o outro.
Isso, como vivemos, como convivemos.
Também se relaciona com o outro na medida em que esta trilogia parte de três obras de artistas cénicos brasileiros: Vestígios (de Marta Soares), Matadouro (de Marcelo Evelin) e Pororoca (de Lia Rodrigues).
Fi-lo porque gostei muito das três obras. É uma coisa básica e humana, como que a dizer “eu quero isso”.
A forma de reflectir sobre os mesmos foi levá-los para palco com a sua abordagem?
Claro. Quando se diz “eu quero isso”, implica uma relação com esse outro, implica, no fundo, a ideia muito básica de sentir “eu queria ter feito isso, eu queria estar ali”. A ideia dessa relação com as obras, e por isso a antropofagia, é pôr de lado todo o pensamento racional e ocidental sobre as coisas, no sentido de interpretação, leitura, análise.
Vazar a cabeça, portanto.
Sim, as pessoas relacionam-se a partir de um esquema que coloco em ti, sobre ti. Por exemplo, tens essa barba grande e tal, isso já me dá um universo, que é diferente do assessor que nos veio apresentar. Como é que me posso relacionar sem esses condicionamentos sociais? A gente faz esse exercício nas obras, ou seja, pensar sobre as mesmas sem pensar quem fez, quando fez, o que procurava.
E o que vemos nas suas obras dessas obras?
Quando falamos de antropofagia pensamos nas tribos indígenas brasileiras. São relatos, ninguém está certo. Acredito que haja ficção aqui – e para mim a ideia de ficção é muito importante, porque quando metes ficção estás a acrescentar o desejo, aquilo que gostarias que fosse. Mas essas tribos agarravam um outro, neste caso um conquistador português, muito diferente, e no ritual queriam ser modificados por aquele outro. Então, tiravam as partes do corpo que menos lhe interessavam e repartiam o corpo de acordo com as funções das diferentes pessoas na tribo.
Como assim?
Por exemplo, para o caçador ficavam as pernas, porque precisava de pernas fortes para caçar. O que emana daí é a aceitação da capacidade que o outro pode ter para me modificar. Isto não é canibalismo, não comem qualquer parte do corpo, há uma ética presente. No fundo, comer aqueles que comiam, atropofagizar o antropófago. Uma coisa assim.
Falou com os autores dessas obras?
Não. Quer dizer, o Marcelo Evelin é amigo e viu a peça, os outros não. Se fosse falar com os autores era quase como pedir permissão, e você não pede permissão para comer o outro, do ponto de vista conceptual não tem sentido. Me deixe comer o seu dedo, vá lá.
Acho que isso não vai ser possível.
Exacto. O meu desejo tem outras lógicas, outro universo, que não tem que ver com direitos. Interessa-me descolonizar, tirar o ocidente do nosso pensamento básico. O Boaventura Sousa Santos diz que a melhor forma de o fazer é abolir a dicotomia. Como você pode pensar o que é ser mulher sem oposição, ser do Sul sem ser o oposto do Norte?
O primeiro acto desta Trilogia Antropofágica chama-se Permanecer e foi feito através de um dispositivo colocado em palco.
É, tudo se passa no dispostivo. Em cima de uns pneus vai ser colocada uma plataforma com motores vibradores, o chão treme, e em cima do chão tem muito carvão. A ideia do carvão é que não há nada depois, está tudo queimado, não sobra nada.
Nesse caso, começa uma trilogia pelo fim, ou pelo menos com um material que simboliza o fim.
Sim, nós brincamos com isso. É uma trilogia que pode ser vista de forma inversa. Mas em relação ao Permanecer é isso, é um dispositivo sem performers.
Sem performers? É só o movimento da plataforma?
Bom, para já tem uma duração, das 19.00 às 00.00. A bancada está em cima do palco e o público pode ir entrando e saindo, sem problema. Depois há uma provocação feita ao público, alguém tem que estar em cima da plataforma, de pé, daí o Permanecer. É muito bonito, porque isto não tem limites, é uma negociação entre as pessoas, uma tensão lindíssima, porque alguém tem que ir lá para cima ou a primeira pessoa vai lá ficar em pé cinco horas. “Será que vou? Será que ele está a gostar de estar ali?”. É quase micropolítica, como gerir um espaço público.
E em Resistir há performers?
Sim, até tem um cão. O nosso cão não pôde vir porque tem muitas burocracias, mas é um Cimarron, pesa 60 quilos. Mas vamos arranjar outro para aqui. Ainda assim, o Cimarron tem uma importância especial para nós, foi levado para o Uruguai pelos colonizadores e com o tempo foi-se tornando selvagem e atacava as vacas. Depois da independência, tornou-se um símbolo do país e a única raça própria do Uruguai, até desfila com o exército.
E qual o papel dele neste acto?
Gera uma situação com o público. Aprendi bastante com ele. Estava a tentar treiná-lo e com o tempo habituou-se a estar connosco, mas no dia da estreia, quando as pessoas começaram a entrar, ele ladrou bastante, que era algo que nós queríamos, mas que nunca conseguimos treinar: ele estava simplesmente a defender os seus. Quando a última pessoa se sentou, ele calou-se. Essa tensão era o que nos interessava.
Há uma tensão, diferente do primeiro acto, mas há uma tensão.
Sim, o cão depois fica em cima das madeiras com os performers, que por lá saltam e se enraivecem por uma hora. É algo de incerteza, esta estrutura com as tábuas não é segura, e cansa bastante. A gente descobriu que o corpo, em tremendo cansaço, encontra potência, e é um colectivo, suportam-se. Era curioso que nos ensaios, quando um parava, paravam todos.
De alguma forma, segue a ideia de que quanto mais cansado se está, mais se tem que dar.
Isso. A noção de resistência começa a aparecer como um corpo que vai saindo para outro lugar, vai olhando para o seu corpo em constante luta, mas de fora, observa de fora.
Ocupar, terceiro acto, é uma estreia mundial...
Sim, Ocupar está mais num lugar de especulação. Digo isto porque como a estamos a preparar aqui em Lisboa, e como o mais importante é essa relação com o público, só saberei como vai ser quando isto acontecer.
Mas têm ensaiado, presumo.
Claro, não é isso. Só que isto é um ritual, o que a gente perdeu nesta contemporaneidade é a temporalidade, que era aquilo que o ritual nos dava: estar ali. Não tem a ver com produzir.
Ainda que também não possa ter a ver com um adormecimento, certo?
Não. É uma positiva activa, tentando, colocando, para que aconteça, para que o santo desça à terra.
E isso é Ocupar?
Bom, temos um problema aqui linguístico, nós chamamos a isto de "avasaliar", que me disseram que não tem tradução portuguesa, mas isso significa quase como um rio que se enche de água, desborda e leva tudo...
E o espectáculo tem água?
Não. Tem um muro, com as madeiras do segundo acto. E tem uma equipa de futebol, 11 pessoas em cena. O muro tem uma coisa incómoda lá no meio, tem um signo, e a gente tenta desbordar esse signo. Enquanto audiência é estranho, há um muro que nos impede de ver para a parte de trás e, por vezes, a festa é mais interessante lá do que à frente. E o corpo é um corpo estranho, o muro está longe.
Mesmo as pessoas da primeira fila estão longe?
Sim, está longe. É lá em cima do palco. E como te digo, isto ainda é especulação, estamos a tentar perceber o que nos dá o muro, o problema é algo positivo para nós.
Mas quando o muro lá estiver logo se vê?
Claro. Bom, não é assim tão superficial, colocar o objecto e simplesmente esperar para ver. Temos uma estrutura. Pensemos nisto: quando morrem dez mil pessoas na Síria dizemos "ai, que coisa horrível", mas está longe, não conhecemos. Quando morrem dez em Barcelona é um choque, dizemos que já ali estivemos. Tenho um amigo que filmou e mandou para a gente. O que quero dizer com isto é que você tem a possibilidade de dizer “isto afinal não é assim tão longe”.