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Uma piscina patológica, um bule de terebentina

Escrito por
Miguel Branco
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“Adoecer”, romance de Hélia Correia, chega ao CCB pela mão de Miguel Jesus e d’O Bando. Uma dança (ou doença) pré-rafaelita que espicaça a ideia de liberdade, a beleza de um chá sórdido, de um rio contaminado. Para ver de hoje a segunda-feira no CCB.

Lizzie está doente. Dante está doente. Londres está doente. O rio está doente. O Bando está doente. Por mais que nos digam que esta febre não palpável, impossível de medir, seja exclusiva de Elizabeth Siddal ou Lizzie (Catarina Câmara) depressa duvidamos. Na Londres pré-rafaelita, chá e impureza, lugar onde a arte é asfixia e coito, vivem, melhor, sobrevivem Dante Gabriel Rossetti (Miguel Moreira) e Lizzie, casal-reclusão, pintor e modelo.

Patologia que também apanhou Miguel Jesus, quando leu “Adoecer”, romance de Hélia Correia que lhe serve os intuitos, que quis atirar para palco. A peça, com o mesmo nome, é para ver de hoje a segunda, no CCB, antes de se mudar para Vale dos Barris, Palmela, onde estará de 5 a 15 de Outubro.

A doença, tal como o desejo de efectivar qualquer coisa que nos engole, nem sempre tem a mais explícita das justificações: “Quando comecei foi por amor ao texto; o livro é incrível, fiquei embrenhado ali dentro, achei que havia de dar qualquer coisa, mas não estava a ver por onde é que ia”, conta Miguel Jesus. Mas foi, talvez vai, muito bem. A Dante e a Lizzie junta-se, no elenco fixo, alguém (Sara de Castro). Uma espécie de fantasma dos seus egos, uma irmã malévola e calculista com chapéu de mágica, uma fantasia que lhe intercede nos destinos. Uma narradora-comentadora que pode bem ser Hélia Correia, se fosse a cena.

Esta tríade percorre a casa do casal, algures no campo, nos arrabaldes pantanosos de Londres, entre a necessidade de Dante em ir à cidade ver uma exposição, beber uma pint, enfim respirar, e a ânsia de esconder a sua modelo de cristal, a sua mais-que-tudo que talvez devesse ser pelo menos um bocado menos.

Cada convidado (no total são 12) que os visita repete a frase “A Lizzie está doente”, e quanto mais a doença a invade mais Lizzie dança. Miguel Jesus não sabe, fala sempre com um talvez, mas o encenador parece não acreditar neste formato ou nesta doença: “Se calhar a Lizzie não está doente, se calhar está numa greve, uma greve da saúde, se calhar todos os que estão a dizer que ela está doente é que estão doentes, se calhar há um excesso de organização e de regras e de limpeza e de uma sociedade muito bem-disposta e que nunca está doente e que nunca olha para a morte. Se calhar, isso é um tipo de doença também. E a Lizzie está doente, mas cada vez mais dança, cada vez está mais livre.”

Entre um rio contaminado – que se vai contaminando, e uns regos onde a água corre até eclodir na piscina, que projecta reflexos diversos, que nos dá o conforto auditivo da água, numa ambiência de natureza pouco evoluída, longe da barragem –  lá vão chegando os amigos e conhecidos. “Os convidados são a lufada de ar fresco, o Dante e a Lizzie, por eles, viviam num estúdio a cheirar a terebentina e faziam amor o dia todo, andavam à porrada, pintavam e era tudo a mesma coisa. Felizmente que existem estas pessoas ou não havia história”, enquadra o encenador.

E por falar em história, esta, que Hélia Correia fez brotar em prosa, chega à Sala de Ensaio do CCB em distintas linguagens, que se confundem também com a formação dos intérpretes: Sara de Castro é actriz d’O Bando faz pelo menos quinze anos; Catarina Câmara vem da dança; Miguel Moreira vem da dança/performance. Depois, há os convidados, que na peça, como na vida, podem tocar à campainha sem aviso, como explica Miguel Jesus. “A base com os protagonistas está ensaiada, mas tem uma grande abertura, é permeável. Com o resto dos convidados tentámos criar cenas de teatro pouco ensaiadas, tentar não ensaiar. É a aposta do espectáculo, até porque a reacção aos convidados é um bocado como na nossa vida, tens uma relação vais beber um café, aparece um tipo que já não vês há anos, leva-te não sei para onde, isso não está ensaiado.”

Que caldo este. Gente que emergiu de geografias diferentes só pode dar uma paleta de abordagens relativamente larga, que se aprisiona à estética do espectáculo. “Estas disciplinas, o teatro e a dança, não sei, às vezes parece que não falamos a mesma língua. É difícil tu conseguires ouvir uma frase em teatro e a seguir um gesto de dança e continuares a mesma história. O exercício é um bocadinho esse e esta é das primeiras vezes que tenho uma história, do princípio ao fim, que está muito bem escrita, então pude permitir-me estragar aquilo tudo. Tenho um bocado da história contado mais à teatro, outro contado mais visualmente, por aí. A história vai-se construindo nessa diversidade”, avisa.

E se há disparidade, e se um gesto equivale a uma palavra e uma palavra a um gesto, se um olhar é um movimento de dança, se o cenário é moderno e ousado para falar de um tempo que não é este, se vale isto tudo, os grandes culpados são os pré-rafaelitas, são Dante Gabriel Rossetti, são Elizabeth Siddal, são John Everett Millais, são William Holman Hunt.

São eles que nos dizem que a beleza pode ser gente com mãos de manequim, pode ser um rio onde desaguam os dejectos sanitários; a beleza pode, no fundo, ser a doença. Que em Lizzie assume as vestes da liberdade. “Somos todos epígonos e consequências de uma série de coisas que foram acontecendo. Os pré-rafaelitas foram um motor disso, daquela coisa de poderem haver várias formas de beleza, a beleza não é arrumada, não é limpinha, a beleza nem sequer é bonita, a beleza é outra coisa. Quando lemos Herberto Helder fica tudo esclarecido. Mas há 150 anos não era assim, havia uma norma, quisemos jogar com isso para falar de outras normas”, conclui Miguel Jesus. Maravilhosa dança. Perdão: doença.

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