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Ways of looking: a ditadura da luz

Escrito por
Miguel Branco
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A segunda criação de Teresa Coutinho, integrada no Ciclo Recém-Nascidos do Teatro Nacional D. Maria II, parte de Ways of Seeing – série de John Berger para a BBC – para debater a linha que separa o espectador do intérprete. E fá-lo, quase sempre, de projector de luz na mão. Para ver de hoje a domingo.

Um projector de luz e uma cadeira. E ainda que a cadeira esteja desocupada – que normalmente é apenas isso: uma cadeira sem vida e sem ninguém a quem oferecer os seus serviços – não paramos de a vislumbrar. É que é para lá que a luz nos diz para olhar. Então mas por que raio a senhora luz está a dar para ditadora? Então e não posso olhar para o escuro, se for essa a minha vontade?

São estas – e outras, sempre em torno do olhar, da relação entre público e intérpretes – questões que nos perseguem durante Ways of Looking, espectáculo que Teresa Coutinho apresenta no Teatro Nacional D. Maria II, integrado no Ciclo Recém-Nascidos. A interrogação, por aqui, é eterna.

E a ideia é mesmo essa. A ideia que começou, como outras começam, depois de Teresa Coutinho ter comprado um livro há três anos: Ways of Seeing, do John Berger. Livro que mais não é que a compilação da série televisiva que a BBC transmitiu em Janeiro de 1972 e que caça intentos semelhantes aos da jovem criadora: debater a relação entre quem vê e quem dá a ver, quem faz e quem vê fazer. Antes de prosseguirmos façamos o aviso que John Berger fez, e que Teresa Coutinho reforça: “Não te esqueças espectador que isto que estou a fazer foi concebido para te convencer.”

E ó para nós, perfeitamente convencidos. Embrenhados numa espécie de coreografia, que Teresa Coutinho e Guilherme Gomes – actor do Teatro da Cidade que aqui é intérprete e ajudante à criação – idealizaram como um jogo de camadas, uma laranja que vai ficando sem ou com mais casca, e a que decidiram chamar percurso.

Alguém entra em palco, com a tal cadeira e o projector sobre a mesma, depois esse alguém arrasta a luz para outra morada, umas vezes invade a luz, outras vezes mantém-se no escuro. E a coisa repete-se durante quase todo o espectáculo, com pequenos enchimentos ou cortes, sempre à boleia do projector. “Quando começámos a pensar sobre isto quisemos reflectir sobre o olhar do espectador e o que é que é isso de manipular, direccionar o olhar. E no teatro há um elemento que tem essa força: a luz. A luz diz 'olha para ali' e é daí que nasce o percurso, a luz aponta-te para um lugar, mas no fundo a presença de um intérprete, que está no escuro, também é fortíssima. Fomos fazendo testes, tentativa e erro, fomos introduzindo camadas que desvirtuam ou redimensionam a coisa”, explica Teresa.

É certo que neste teatro nem sempre dito, onde a palavra só aparecerá mais tarde, há uma fricção, um desconforto latente na proposta meio manipuladora, que pode originar resultados bastante distintos. “O objectivo é acima de tudo desafiar o espectador, é propor uma experiência com a noção que vai ressoar de formas muito diferentes nas várias pessoas, porque as pessoas são diferentes. Queríamos que as pessoas se confrontassem, que o espectador durante o espectáculo possa fazer-se perguntas, como ‘estou a olhar para ali porque realmente quero? Ou porque me estão a dizer para?’”, explica a criadora.

Dissemos mais tarde, mas não assim tanto. A palavra aparece agora. E aparece assim. Em frases curtas. Em enumeração fragmentada. E é assim mesmo. “Esta ideia de frases curtas acho que tem a ver com uma espécie de modo de exteriorizar que foi surgindo nas nossas experiências, tudo o que vamos fazendo são quase frames, minifilmes, é quase como se a palavra obedecesse a isso”, enquadra.

Lá para o fim, a palavra vai ser mais do que no início uma oposição ao percurso, ao ritual da luz mandona (não queira ler outra coisa, não tire o n, estimado leitor), vai dar teatro de uma forma mais convencional. Ou talvez não.

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