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Se só conhece Mário-Henrique Leiria dos seus Contos do Gin-Tonic, os próximos três anos vão ser uma descoberta. Ficção, Poesia e Dispersos e Cartas são os títulos das "Obras Completas" que a E-Primatur vai lançar até 2019 e que revelam todo o espólio conhecido do surrealista português. Esta semana as livrarias esperam a chegada do primeiro volume que dá a conhecer contos, teatro e ideias para guiões de cinema. Não perca a cabeça com esperas e leia já um dos inéditos agora revelados pela edição, com organização e notas de Tania Martuscelli.
Saiba tudo sobre a publicação do espólio de Mário-Henrique Leiria na próxima edição da Time Out Lisboa.
ATENTADO (contribuição para um jogo de massacre)
O Primeiro-Ministro pegou no telefone e ordenou:
— Chamem-me o Espião Principal.
Desligou, acendeu um cigarro, recostou-se na cadeira e ficou à espera, rufando com os dedos da mão direita no tampo da enorme secretária de macacaúba.
Bateram à porta.
— Entre — rosnou o Primeiro-Ministro.
A porta abriu-se, silenciosa. O Espião Principal entrou no gabinete, igualmente silencioso, quase num deslize, calado, esperou.
– Vai haver o Atentado. Preciso que resolvas o caso. O mais rapidamente possível. Sem espetáculo. Podes ir.
O Espião Principal pôs a máscara e a boina galega. Inclinou-se levemente, executou um movimento giratório e saiu. Em silêncio.
O Primeiro-Ministro pegou de novo no telefone e ordenou:
— Chamem-me o Espião Secundário.
E ficou à espera, continuando a rufar com os dedos da mão direita no tampo da enorme secretária de macacaúba.
Bateram à porta. Com leveza.
— Entre — atirou o Primeiro-Ministro, esmagando o cigarro no cinzeiro de lápis-lazuli com incrustações a prata antiga.
A porta abriu-se, girando, leve. O Espião Secundário entrou no gabinete num pisar silencioso, sem falar.
— Vai haver o Atentado. Preciso que estejas atento ao Espião Principal. E que resolvas o caso. Sem espetáculo. Podes ir. O Espião Secundário pôs a máscara e o boné de pala. Fez um movimento que recordava uma vénia, virou-se e saiu.
Deslizando.
O Primeiro-Ministro pegou ainda no telefone. Olhou para as árvores do velho jardim que se recortavam na janela, e ordenou:
— Chamem-me o Espião Estagiário.
Desligou e acendeu novo cigarro. A mão direita acariciava lentamente o braço de couro da cadeira ministerial.
Bateram à porta. Um toque distante, quase silêncio.
— Pode entrar — resmungou o Primeiro-Ministro, ainda a olhar para as árvores, lá, no velho jardim.
A porta abriu-se, como se não fosse nada. O Espião Estagiário entrou no gabinete, sombra dele mesmo.
– Vai haver o Atentado. Deves observar o Espião Secundário. E resolver tudo.
Podes ir.
O Espião Estagiário pôs a máscara e o chapéu de coco. Deu apenas meia-volta, saiu, como se nunca tivesse estado ali.
O Primeiro-Ministro teve um gesto desajeitado e deixou cair um pouco de cinza no tapete excelente. Depois encolheu os ombros. Foi até à janela e fechou-a. As árvores ficaram lá fora.
— O Atentado é amanhã à tarde. Às cinco e meia. Não se esqueçam de trazer a Bomba — explicou o Espião Principal, levando o copo à boca.
Em volta, os Sete Companheiros acenaram compreensiva- mente com a cabeça, levando também o copo à boca. Súbito, o napalm inundou-lhes o apartamento. Um copo rebolou pelo chão, sem se quebrar.
— Está resolvido o assunto. Mas não se esqueçam, o atentado é amanhã à tarde, às cinco e meia. Sem falta.
— Com a metralhadora — informou o Espião Secundário, sacudindo uns restos de cinza que se conservavam pegados ao boné de pala.
Os Nove Solidários concordaram em silêncio, enquanto acendiam os cigarros do ritual.
A granada entrou pela janela como um fruto a cair da árvore. A caixa de fósforos ficou equilibrada no canto da mesa desfeita, em utilidade aparente.
— Bem, tudo vai pelo melhor. Mas é bom prestar atenção ao Atentado. É amanhã, às cinco e meia da tarde. Em ponto. Não esqueçam, foco e rapidez — estava explicando o Espião Estagiário aos Cinco Voluntários, enquanto guardava os restos do pavio, quando a tenda foi esmagada pelo pedregulho enorme. Apenas uma estaca metálica se conservou, erecta, ainda a vibrar.
— Meus senhores, a acção tem que ser rápida — afirmou o Presidente aos seus Guardas especiais que, perfilados, o escutavam em frente à solene mesa das recepções extraordinárias. Na sala, apenas os bustos dos heróis e a bandeira da pátria a um canto.
— Além dos Guardas Especiais — o nosso Primeiro-Ministro não deve sofrer. Sejam rápidos, é o que lhes peço.
Podem ir.
Os Guardas Especiais foram.
— Bem — dizia Gabriel Zacuto para si mesmo enquanto, completamente só, preparava a carabina de telescópia. — Sejamos coerentes.
E, da janela do 12º andar, abateu o Presidente que passava pela larga Avenida da Esperança no carro especialmente descapotável. A multidão aplaudia. O Presidente parou de acenar, a mão pendeu-lhe um pouco e caiu para a frente, em cima do motorista fardado. Com um ar levemente espantado no rosto e um buraco inesperado entre os olhos.
— Amigos, Companheiros, serei sempre, para vocês, o pro- tector dos pobres e dos crentes — afirmou Gabriel Zacuto, enquanto os microfones da Emissora Universal e as cameras da Organização Televisiva o registavam rigorosamente a encerrar o discurso inaugural da Nova Era Livre.
E foi para casa.
Cansado.
No quarto de banho meteu a cabeça debaixo da torneira, sacudiu-se, enxugou-se e, já mais fresco, preparou-se para jantar.
Ao entrar na sala, a mulher a dias encarou-o, discreta. E enterrou-lhe a faca dos bifes no baixo ventre.
Até ao cabo.