Nunca imaginámos que o TikTok pudesse ser um lugar de peregrinação para bibliófilos. Mas a verdade é que, nas profundezas de uma das aplicações mais populares do último ano – por entre desafios de dança, tutoriais de beleza, memes duvidosos e a presença esmagadora da Geração Z –, há um canto especial para quem não resiste a virar páginas de livros de toda a espécie e feitio. Conhecido como #booktok, este surpreendente santuário literário já soma mais de 21 mil milhões de visualizações. Na vida real, sobretudo no Reino Unido, nos EUA ou no Brasil, o impacto é impressionante: são várias as obras a esgotar ou a entrar nos tops de vendas graças a este fenómeno digital. Em Portugal, devagarinho, os seus efeitos também se começam a sentir.
A lista de títulos do momento, promovidos em vídeos com menos de um minuto, inclui desde clássicos (publicações de luxo, como a belíssima edição de coleccionador da Wordsworth de Orgulho e Preconceito) até séries de fantasia para jovens adultos, como O Príncipe Cruel, de Holly Black (ed. Topseller), uma teia de intrigas no Reino das Fadas, ou Caraval, o primeiro livro da trilogia de mistério e magia de Stephanie Garber (ed. Presença). Mas há muitos outros sucessos inesperados. Lançado em 2014, Quando Éramos Mentirosos (ed. ASA) voltou à lista dos mais vendidos em meados de 2020. “Inicialmente não percebemos porquê ou como é que, sete anos depois do lançamento, o livro da E. Lockart estava de volta aos tops internacionais. Ainda assim, aproveitámos para reeditar, com uma capa nova”, conta José Menezes, director de comunicação da Leya, que detém a ASA. Do mesmo grupo, a editora da Gailivro, Ana Lúcia Maduro, nota que não é caso único.
O thriller Um de Nós Mente, por exemplo. Inspirada no filme dos anos 80 O Clube e na série de TV Pequenas Mentirosas, a estreia absoluta de Karen M. McManus, que chegou a Portugal em 2018 via Gailivro, não só teve um crescimento assinalável nos últimos meses como também entrou nos tops de vendas da Fnac e das livrarias Bertrand. “Chegámos à 7.a edição, porque tivemos de imprimir mais exemplares, e foi um dos mais vendidos do nosso espaço na Feira do Livro”, revela José Menezes, seguro de que as redes sociais estão a ter um papel fundamental na divulgação. “O segmento YA [young adults, ou jovens adultos] demorou algum tempo a ter o seu mercado em Portugal, mas agora parece estar a mexer. Estou convencido que se deve muito a alguns leitores que, durante o confinamento, se dedicaram a criar conteúdo para o TikTok.” São os booktokers e parecem estar a promover a leitura como algo “fixe” junto de uma nova geração, que muitas vezes ainda entende a actividade como uma tarefa árdua e não como uma forma de entretenimento.
#booktokportugal, onde andas tu?
A comunidade portuguesa do BookTok – que se reúne à volta da hashtag #booktokportugal – conta com mais de sete milhões de visualizações, apesar de a maior parte das contas não atingir a marca dos dez mil seguidores. “É a partir desse número que se começa a aparecer na página principal do TikTok com mais regularidade”, explica Beatriz Rosa (@probablysininho), que está na plataforma desde 2020 e tem mais de 14 mil seguidores. “O meu perfil não é apenas dedicado a livros. Só comecei a produzir mais conteúdo relacionado depois de uma amiga me chamar a atenção para o facto de quase não haver BookTok em português, porque os próprios leitores portugueses estavam a criar em inglês.” O problema, assegura, é que, por um lado, muitos dos livros que viralizam no TikTok ainda não estão traduzidos; por outro, as capas portuguesas não enchem o olho.
Numa app de vídeo em que a imagem predomina, sobressaem as capas simples, mas particularmente bonitas, como o de A Vida Invisível de Addie Larue, um thriller de V.E. Schwab sobre o sabor amargo do esquecimento, cuja edição portuguesa, da Minotauro, preserva o design original da Tor Books. Infelizmente, parece circunstancial. “Há um certo descuido e as editoras portuguesas abusam das imagens de stock”, lamenta Beatriz. “Não devemos julgar um livro pela capa, mas a primeira impressão conta.” Sobretudo no BookTok, que nos tenta a carteira com lombadas coloridas ou através da chamada aesthetic da história. Resumir um enredo a uma montagem de fotografias digna do Pinterest pode ser visto como superficial, mas é o primeiro passo para debater as histórias ou a falta de representatividade de grupos minoritários, que vão surgindo em sketches atrevidos. Os livros com personagens LGBT e não brancas são muito populares no BookTok.
“A forma como falam sobre os livros e partilham o que pensam e sentem não é menos substancial por ser descontraída e, tantas vezes, sem filtros”, defende Tânia Raposo, editora adjunta da Presença, antes de nos revelar um segredo mais ao menos bem guardado. O primeiro volume da série de Sarah J. Maas, A Court of Thorns and Roses, vai ser publicado pela Marcador, chancela do grupo, em Fevereiro de 2022. Esta reinterpretação de A Bela e o Monstro e do conto de Tam Lin, uma balada tradicional escocesa, é um dos maiores êxitos no BookTook e um dos “queridinhos” dos fãs de fantasia. Contracorrente, Maria Rita Matos (@booklover.rtq), que conseguiu a proeza dos dez mil seguidores numa conta exclusivamente literária, não gostou e até o incluiu num vídeo sobre sagas que deixou a meio. Ainda assim, está feliz por se estar a investir na tradução. Melhor só a publicação de novos autores portugueses, como M.G. Ferrey, que se estreou este ano com Aquorea (ed. Nuvem de Tinta), sobre uma adolescente que descobre uma comunidade milhares de metros abaixo do nível do mar.
“Face ao brutal desinteresse dos portugueses pelos livros, as comunidades digitais vieram criar novamente a ânsia da leitura. No caso dos autores portugueses, isto pode ser o empurrão para tirar um autor do anonimato ou tirar o seu livro de uma prateleira escondida numa livraria”, afirma Helena Magalhães, fundadora do Book Gang, um clube do livro digital que nasceu no Instagram, se transformou em livraria online e está agora no TikTok. “A grande batalha dos autores e das editoras hoje é responder a uma simples pergunta: como é que chegamos a um leitor que não está à nossa procura? A resposta é: escrevendo o que ele quer e falando com ele nas plataformas onde ele está.”