Poucas expressões soam tão portuguesas como punheta de bacalhau. Num mesmo prato, cozinham-se duas paixões nacionais: o bicho salgado e a piadola apimentada, num trocadilho entre onanismo e acepipe. Mergulho nesta reflexão ao escutar uma senhora francesa que ensaia o nome do prato – “punhetá?! punhêtan?!” – enquanto mira a ardósia do Quiosque de São Paulo. Dou por mim a pensar que o português tem tantas alternativas àquela palavra como formas de cozinhar bacalhau, e que a sinonímia marota é outro dos nossos divertimentos. Do balcão lá explicam à senhora que se trata de uma dose do peixe cru, muita cebola, alho picado e salsa do mesmo modo, tudo regado com azeite. Ela acena que sim, quer uma dessas, mas continua mais curiosa com a fonética do que com o significado – “punhêtá?!”.
Já eu estou mais intrigado com a compostura da assistência – esplanada quase cheia e nem uma alminha se escangalha a rir. Percebo depois que nativos só os de serviço e eu próprio. É meio-dia e picos de um sábado, o largo vai-se compondo e o português é a terceira língua mais falada. Tinha reparado o mesmo lá em cima, à porta da Taberna da Rua das Flores, casa-mãe deste quiosque, onde já havia fila e a espera se comentava em francês.
É a minha estreia por aqui e quero um pouco de tudo. Pede-se ao balcão, “pode sentar-se que já levamos à mesa”, pagamento é no fim. Começo por reunir um sortido de salgados (1,50€ a 2€ a peça). Não me convence o ovo verde, ligeiramente ressequido; melhores o pastel de bacalhau e o pastel de massa tenra, com o recheio bem perfumado de cominhos. Mas isto foi só para sossegar a larica, que eu vim aqui foi pelo petisco.
E nesse campeonato, a oferta impressiona.
Bem sei que a comida é feita na cozinha da Taberna de André Magalhães & Cia e aqui as coisas são apenas finalizadas (o pão das sandes, por exemplo, aquecido numa pequena grelha). Mas mesmo assim parece-me um milagre logístico o que esta malta faz em dois metros quadrados. A ardósia anuncia berbigão na cafeteira (6,5€), que hoje não há; carne de carapau (3€), que também está riscado; e peixinhos da horta (4,5€), que haviam de ser bons mas também já foram. Conto, portanto, três boas razões para voltar. Mas conto mais.
Por hoje prova-se salada de polvo, um pratinho (4€) bem aviado de cefalópode tenro, a puxar ao colorau, sem excesso de entulho de pimento e cebola, tudo picadinho como deve ser. E depois uma branlette de cabillaud (4€), que é como se poderia inscrever o petisco da senhora francesa, caso o menu estivesse traduzido. Oh là là!, vos digo. O vinagre no ponto, a cebolada farta a cozer em bom azeite, umas fatias de bom pão de trigo para mergulhar (“se quiser mais pão é só pedir”, e eu pedi). Das sandes, provou-se a de pernil fumado (4,5€), óptima, o porco de boa índole, servido em lâminas finas, envolvido numa espécie de vinagrete rico em coentros e um toque de pickles. Depois insistimos na sandes de lula frita (4,5€), que já conhecíamos, e que se mantém em grande forma, uma bola aquecida cheia de nacos e patinhas estaladiças, tudo envolvido numa maionese picante. Por mais 2€, chegam guarnecidas com umas boas chips caseiras. Hei-de voltar também pela sandes de sangacho com cebola (3,8€), mas por hoje estou aviado.
Termino o segundo copo de vinho (copinho raso, 2€, chega fresco e sublinha o perfil tasqueiro da experiência) e penso que me sinto verdadeiramente em Lisboa. E isso não é só obra da calçada torta que tenho debaixo dos pés, do eléctrico 25 que passa ao lado ou do sol de Outubro que me aquece. É pelo festival de petiscaria popular, inteligentemente cultivada por estes taberneiros, que me faz suspirar por uma cidade mais autêntica e clamar por um boteco destes em cada praça.
No livro Quiosques de Lisboa (1987), Baltazar Caeiro explica que a palavra tem origem no francês kiosque, que por sua vez deriva de kioushk, palavra turca que também significa “nádega”. Imagino-me a fazer conversa sobre isto com a francesa, explicando também que “punhêtá” é talvez apenas uma corruptela malandra de “espinheta”, o outro nome dado ao petisco de bacalhau que se fazia com a parte do rabo. E depois a comentar como isto anda tudo ligado.
*As críticas da Time Out dizem respeito a uma ou mais visitas feitas pelos críticos da revista, de forma anónima, à data de publicação em papel. Não nos responsabilizamos nem actualizamos informações relativas a alterações de chef, carta ou espaço. Foi assim que aconteceu.