Quando dás por ti, já foste. Água e nervos por todo o lado. Aquela sensação de impotência e estranheza. A possibilidade de uma lesão matreira à vista. Foi mais ou menos assim que demos por nós no pátio do Pestana Palace, quando o campeão das ondas gigantes nos desafiou a saltar para cima do tejadilho do seu carro. "Tens que garantir que ganhas", diz-nos o homem que saiu vivo de uma vaga de 30 metros e que torce por nós no pátio de um hotel de cinco estrelas como se estivéssemos no canhão da Nazaré. Garrett McNamara lançou o repto nas suas redes sociais. Uma boa foto em pose de surfista pode valer uma viagem à Praia do Norte. Os mais afoitos, terão até a possibilidade de acompanhar o recordista no seu jetski. Agora que nos metemos nisto, é para ganhar. E Deus nos ajude.
Uma onda, um recorde mundial e uma imagem incrível para a capa da biografia Lobo do Mar (edição Marcador). Normalmente, se não há foto não aconteceu. Lembras-te de um momento espectacular que ninguém apanhou?
Há muita coisa do género, em que retenho uma imagem mental. Talvez quando o DJ Hardwell veio actuar aqui em Portugal. Entrou a voar com o seu helicóptero. Gostava de ter tirado uma foto, e de ter uma foto do momento em que fui ao palco.
Sentes-te tão famoso como o número 1 do DJing?
Não, sou um tipo normal, só tenho sorte. Sinceramente, acredito que a sorte é quando a preparação se encontra com a oportunidade. Se estiveres pronto, as coisas acontecem.
Lembras-te desse momento em particular quando os astros se alinharam?
Com o recorde mundial tudo se alinhou de forma perfeita. Naquele dia não queria surfar, ia só ajudar os meus amigos a apanhar ondas; disse-lhes que não ia para ali para satisfazer os patrocinadores ou bater recordes. Só ia para ali pelas razões certas, por querer fazer aquilo.
Porque não querias ir?
Estava muito cansado de ter surfado na véspera. Eles acordaram-me a dizer que havia ondas grandes mas eu não queria nada levantar-me. Mas quando estás rodeado das pessoas certas elas tiram-te da cama. Fomos para lá. Eles apanharam as ondas deles, perderam as pranchas e disseram-me para ir eu. Lá disse "ok" (fecha os olhos), respirei fundo, sintonizei-me com a natureza, olhei para a montanha, para o mar, senti a energia das pessoas. Pelo rádio a minha mulher disse: "vem aí uma MAC!"
As ondas grandes já têm a tua alcunha, GMAC.
É verdade (risos). Ela usou a palavra. Estava destinado. Surfei aquela onda pelo prazer de fazê-lo, mais nada. Saí dali e não pensei em nada de especial. Depois queria apanhar mais e mais. "Não, pára!", disse a minha mulher. Foi sorte. A oportunidade certa apareceu.
É viciante?
Eu fui viciado. Agora estou em paz como estou, esteja a surfar ou não. Posso sentar-me aqui neste sofá e dizer que não preciso de surfar, mas claro que quando entro na água pareço um puto que quer apanhar as ondas todas. Sinto-me confortável em terra, por não ter que apanhar todas as ondas. Andava sempre a morder a minha cauda. Sempre que via um swell fazia isso. Surfar deu-me tudo e agora quero dar isso ao mundo.
Divertes-te com um humilde meio metro de altura?
Sabes que mais? O que mais me diverte é levar crianças a surfar e vê-las contentes com isso, a surfar pela primeira vez. Aí é garantido que me divirto.
Como profissional consegues manter a pureza dessa diversão?
Se não começo pela ideia de me divertir, nem sequer penso em fazer isso. O projecto tem que me entusiasmar, tem que ser relevante. Na minha vida tinha um objectivo: ter a minha casa, ter uma reforma aceitável. E consegui isso. Os meus objectivos eram realistas, não eram muito elevados. Tudo o que vem por acréscimo, gosto de partilhar.
Sentes falta do tempo em que os surfistas não eram super-estrelas?
Sim, era muito divertido quando não era um trabalho. Só tinhas que pensar em surfar. Desde os 17 anos tratei isto como um trabalho. Mas não percebia nada de negócios. No Havai o tempo está sempre bom. Repara, a praia está no lado esquerdo, e a escola do lado direito. A minha casa era no meio. Podia ir por um caminho ou por outro, mas ia sempre pelo lado esquerdo (risos).
E a escola?
Não sei nada de marketing, não fui para a universidade; era muito inocente. Pensava que o meu trabalho era só tirar uma foto para o meu patrocinador. Era um tempo maravilhoso. Mal tinhas fotógrafos.
Nem redes sociais.
Pois, é outro mundo. Para conseguires surfar tens que gerar dinheiro. São sempre dois pesos na balança, tens que equilibrar isto para poderes fazer o que gostas. Sou surfista de alma e coração mas preciso de pagar contas, rendas, bilhetes de avião. Tentas tirar partido disso. Divirto-me mesmo a trabalhar mas só quero paz interior.
O que poderia ter sido um tipo que faltou às aulas?
Podia estar a servir às mesas num restaurante ou ser um bom carpinteiro ou mecânico. Sou óptimo em trabalhos manuais, a construir pranchas, a fazer algo na indústria do surf, ou a receber pessoas. Sou ambicioso e acordo sempre com as galinhas a pensar no que posso fazer a seguir.
Bom, com as galinhas, menos naquele dia do recorde.
Foi a primeira vez que aconteceu! Juro, estava mesmo cansado.
Onde entra o medo no meio disto tudo? É maior no mar ou em terra?
Quando estou na água sinto-me muito confortável. O medo é adrenalina. Acho que perdi a adrenalina de alguma forma.
O que intimida?
Tenho medo quando conduzo um carro estrada fora. Por exemplo, sei que não andarei de cavalo, não irei pilotar um avião, não nado com tubarões. Mas na água estou em casa.
Há outra coisa perigosa que também faças?
Yoga (risos).
Para irrequietos pode ser de facto perigoso, ou aborrecido.
Fazes yoga?
Não.
Devias, é bom. Agora gostava de pensar numa cena profunda para dizer (risos).
Força.
Tenho uma sorte dos diabos por ser um surfista de coração que é pago para surfar. É um sonho. Quando lês o livro percebes que tive uma infância complicada. É por isso que lido imenso com miudos, com órfaos. Sei lá, tenho a sorte de o mar ser a minha igreja e o meu parque de diversões.
Querias uma frase profunda, aí está. Recordas-te da estreia no santuário português das ondas?
Quando vim ver se a onda da Nazaré era mesmo boa, era ainda maior do que pensava. Nunca planeara vir a Portugal.
Mas um local escreveu-te e desafiou-te a vir.
Sim, e no Havai 30% das pessoas têm sangue português, sabias? Nem nós surfistas, nem o resto do mundo, pensava em Portugal como destino de surf. Nem sabíamos onde era. Lá vi no mapa que ficava ao pé de Espanha, África; dei com o canhão, e fiquei entusiasmado. Quando olhei para aquilo vi que tinha encontrado o que procurava e que podia fazer algo incrível ali. A Nazaré podia melhorar imenso. Este ano vamos lá ter o maior evento de ondas gigantes.
Mudaste a vida da Nazaré. O que é que a Nazaré mudou na tua vida?
Todos os meus sonhos se concretizaram. Casei-me lá. Tenho uma família portuguesa. Ainda ontem estive com a minha mãe portuguesa, a Celeste. Toda a gente lá é como família. Digo que Portugal são os meus amigos, a Nazaré a minha família.
E a vida em Lisboa?
Passo imenso tempo neste palácio. Adoro. Sabes que me puseram na suite da Madonna antes mesmo de ser conhecido? (risos). É um quarto incrível. Tens que conhecer. O Prince também fica lá.
No caso do Prince...
Pois, ficava. Costumava ficar lá muito. Este grupo Pestana tornou-se a minha família lisboeta. Levaram-me à Madeira, deixaram-me ficar no hotel do CR7.
Conheceste-o?
Ia conhecê-lo um dia mas desencontrámo-nos porque tive que partir. Hei-de conhecer um dia. Admiro-o muito por vir de onde vem e também ter tido uma infância dura. Adorava partilhar histórias com ele.
E arranjar casa cá?
Já pensei nisso, quero muito. Quando cá vim queria comprar uma mas não tinha dinheiro. A Nazaré era ainda uma vilazinha pouco desenvolvida, fria, com a economia em baixo. Mas eles são duros.
Mas por onde andas em Lisboa?
Adoro a Lx Factory. O bolo de chocolate da Landau é o melhor do mundo. Gosto muito do La Campania. Ah, o bife!
Mas não és vegetariano?
Sou quase 100% vegetariano mas aqui como imenso marisco e quando preciso de um bife vou lá. Adoro ir a Belém aos pastéis. Sempre que vem cá alguem levo lá. Ou vou a Cascais, e à Quinta Regaleira. É meio bizarro mas incrível.
Quanto tempo passas cá?
Cinco ou seis meses. Quando não estou em Portugal estou no Havai ou a viajar, mas passo a maior parte do tempo aqui. Costumo ir à Florida, a LA...e tenho tanta sorte que costumo ir a Las Vegas (risos).
E as ondas?
Estava a gozar. Bom, se mandares fechar uma piscina ainda se arranja qualquer coisa. Estive um ano lesionado; foi o tempo mais longo que estive sem surfar. Voltei há seis meses para umas ondas, depois mais um pouco aqui e ali.
E o regresso em grande?
Acho que vou voltar a 10 de Março. Estou focado no swell que entra a 28. Não quero lá ir se não estiver mesmo bom. Mas se for, vai ter live streaming no Facebook e tudo. Até estamos a fazer um concurso com a Fnac. Tens que entrar.
Concurso?
Quem ganhar vem comigo à Nazaré. Se der, vêm comigo no jetski. Claro que depende se querem mesmo ou não. Se disserem "talvez" não vêm.
Vou consultar as aplicações para ver o estado do mar.
(risos) A Magicseaweed é óptima. Adoro os tipos.
Divertes-te fora deste universo?
Tenho lido mais agora. Não lia nada. Preocupava-me imenso por ler pouco mas depois pensei que ainda ia a meio da minha vida. Para quê ter pressa? Como já não ando doido atrás da minha cauda...
Vais fazer 50 anos em Agosto. É da idade?
Não sei...Acho que vem com o queres realmente na vida. Penso que adoro surfar e que quero fazer isso a vida toda. Tudo o que me interessa é que se não me divertir não vou para lá. Se provoca dor, não vale a pena. Não gosto de dor. Para alguém que já teve a minha carreira, tenho tido muita, muita sorte. Fui abençoado.
Qual era o teu recorde preferido do Guinness antes de entrares no livro?
Adorava aquele das unhas enormes (risos). Que maluquice. Mas há milhões deles, incríveis. O Guinness é uma coisa mesmo cool. Tenho sorte de lá estar. Foi um recorde para Portugal.
Como é que o Havai encara isso?
Ninguém me disse nada, mas acho que têm orgulho. Eu sou de lá, o ukelele vem de Portugal e nós adoramo-lo. O meu sobrinho Landon é o melhor novo artista do mundo. Vai ser maior que o Jack Johnson. Todas as canções dele são dez pontos.
É melhor estar no livro de recordes ou ter a cara num pacote de açucar?
Essa é boa. Isso foi hilariante. É incrível pensar onde o surf te pode levar. Os surfistas não querem a sua cara ou o seu nome em lado nenhum, na verdade. Só querem surfar. Mas o marketing tem estas ideias poderosas. Sinto-me honrado, claro. As pessoas tagam-me em imensas fotos. É divertido seguirem-me.
Segues alguém?
Bom, eu fiz isso com o Hardwell (risos). Adoro música. Este piano que ouves a tocar? Também gosto. Viajaria para ver Portugal a jogar.
Futebol?
Sim, cheguei a jogar futebol em miúdo, antes de ir para o Havai. Quando foi o Mundial no Brasil dividi-me entre os EUA e Portugal. Foi renhido. Já não sabia por quem torcer.
Mas tu és do Havai. Não conta.
Pois, aquilo é uma soberania à parte. É curioso, porque se não tivesse o Havai estaria a viver em Portugal neste momento. Assim que o Trump foi eleito, enfiei-me no Havai. Teria esperado um mês para ver o que fazia mas nesse mesmo dia vi que era louco. Talvez ainda me mude para a Madeira.
É engraçado pensar em surf e Trump na mesma frase.
Espera até veres a foto que eu vou publicar com o Trump. Tens que me seguir no Instagram.
Ok. Bom, acho que estamos.
Espera, tens que me perguntar o que vou fazer no futuro.
Tudo bem. Sabes o que vais fazer no futuro?
Sei. Nos próximos três anos vou numa missão pelo mundo. Conhecer miúdos, uns mil por ano, e espalhar a mensagem. Quero dar-lhes pranchas e leva-los a surfar. Quero contar-lhes a minha história e que saiam daquelas praias a achar que é possível fazerem alguma coisa. Não têm que ser surfistas, têm que saber que podem conseguir fazer algo. Vamos começar em Portugal, este Verão, e depois seguimos para os Olímpicos em Tóquio.
Ainda falas japonês?
[Garrett fala um pouco em japonês] Nos primeiros dez anos da minha carreira só tinha patrocinadores japoneses. Conheço bem aquilo. Posso seguir a equipa portuguesa em Tóquio. Até posso servir de RP para eles por falar japonês.
Isso é simpático. E falas português?
"M´s u menos". "Muito bunito". "Muto foma".
Como?
Muita fome. É que é hora de almoço e vocês têm uma comida incrível.