Pianoforte

10 mestres do piano clássico e romântico para descobrir

Um recital de piano solo no Palácio Nacional de Queluz emparelha João Domingos Bomtempo com um dos expoentes do piano do Classicismo, hoje muito esquecido: Muzio Clementi. Não foi o único a ser aclamado e rapidamente olvidado após a morte

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Mozart, Beethoven, Schubert, Schumann, Chopin, Brahms, Liszt, Tchaikovsky, Scriabin, Rachmaninov, Debussy, Ravel, Prokofiev: são os nomes que são lembrados quando se fala de grandes compositores de música para piano. Quase todos foram também grandes pianistas – até ao início do século XX as duas funções andaram juntas e eram quase sempre os compositores a estrear as suas próprias peças, compostas, aliás, à medida, dos seus dotes pianísticos. A principal excepção foi Schumann, que cedo comprometeu a ambição de ser um pianista de primeira linha quando sofreu uma lesão irremediável numa mão, de forma que foi a sua esposa, Clara, a estrear muitas das suas peças. No tempo de Debussy e Ravel, compor e executar deixaram de estar necessariamente associadas e foi o pianista espanhol Ricardo Viñes que estreou muitas das suas peças.

Estes compositores/pianistas de renome foram contemporâneos de outros que, embora tivessem conquistado grande fama em vida – porventura maior que a de alguns dos nomes acima mencionados –, foram rapidamente esquecidos após a morte.

Bomtempo e Clementi
O penúltimo concerto da temporada Tempestade e Galanteria, pela pianista Laura Fernández Granero, tem por título “Os alvores do Romantismo em Portugal” e emparelha obras do português João Domingos Bomtempo (1775-1842) e do italiano Muzio Clementi, dois compositores que, além de serem contemporâneos e terem em comum a reputação como pianistas e pedagogos, se cruzaram na cidade de Londres. Em 1801, Bomtempo estabeleceu-se em Paris, onde conheceu Clementi, mas em 1810 a agitação decorrente das Guerras Napoleónicas levou-o a mudar-se para Londres. Aí reencontrou Clementi e travou também amizade com John Field, regressando a Portugal em 1815.

Palácio Nacional de Queluz, sexta-feira 27 e domingo 29, 21.30, 10€.

10 mestres do piano clássico e romântico para descobrir

Muzio Clementi (1752-1832)

Clementi nasceu em Roma e aí recebeu, do mestre de capela da Basílica de S. Pedro, a primeira instrução musical. Em 1766, quando tinha 14 anos, o aristocrata britânico Peter Beckford (irmão de William Beckford) ouviu-o e, encantado com a precocidade do rapaz, levou-o consigo para a Grã-Bretanha, comprometendo-se a tratar da sua educação até aos 21 anos; em troca, Clementi deveria proporcionar-lhe entretenimento musical. Em 1773, chegado ao término o vínculo que o unia a Beckford, Clementi instalou-se em Londres, onde rapidamente ganhou estatuto de pianista virtuoso. A partir de 1780 empreendeu várias tournées europeias – em Viena, o imperador José II promoveu um “duelo” entre ele e Mozart – mas acabou por regressar a Londres onde se desmultiplicou pela composição, pedagogia (foi professor de futuros virtuosos como Johann Baptist Cramer, John Field e Ignaz Moscheles), pela direcção de orquestra, pela edição musical (firmou um acordo com Beethoven que que lhe concedeu direito exclusivo de publicação da sua obra na Grã-Bretanha) e pelo fabrico de pianos, instrumento a que trouxe melhoramentos significativos. No meio de toda esta actividade, a sua carreira como concertista foi ficando para segundo plano e em 1810 acabou por retirar-se dos palcos. Deixou-nos 110 sonatas para piano.

[I andamento (Lento) da Sonata op.6 n.º 2, por Susan Alexander-Max, numa cópia de um pianoforte construído c. 1798, do álbum Early Piano Sonatas vol. 3 (Naxos)]

Jan Ladislav Dussek (1760-1812)

Jan Ladislav Dussek nasceu numa família de músicos na cidade boémia de Cáslav. Como aconteceu com muitos músicos boémios dos séculos XVII-XVIIII recebeu sólida formação musical num colégio jesuíta. Após ter concluído os estudos em Praga, em 1778, lançou-se numa carreira internacional que passou pelos Países Baixos, por Hamburgo (onde travou conhecimento com Carl Philipp Emmanuel Bach) e S. Petersburgo, onde fez parte do círculo de favoritos de Catarina II, mas de onde teve de fugir por ter sido implicado numa conspiração para assassinar a czarina. Tornou-se director musical de um príncipe na Lituânia, fez uma tournée pela Alemanha e em 1786 chegou a Paris, onde caiu nas boas graças da rainha Maria Antonieta. A Revolução de 1789 fê-lo trocar Paris por Londres, que se tornou na sua base de operações durante uma década e onde se tornou amigo de Clementi. Foi em Londres que compôs, em 1793, uma peça que descreve musicalmente o fim de Maria Antonieta (guilhotinada em Outubro desse ano), “desde que foi presa até ao derradeiro momento da sua vida”.

Em 1799, a falência da editora de música que fundara com a esposa forçou-o a fugir para Hamburgo (a mulher foi parar à prisão), onde viveu até em 1806, quando entrou ao serviço do príncipe melómano Luís Fernando da Prússia, em Berlim. A morte do príncipe, em 1806, fê-lo regressar a Paris, ao serviço de Talleyrand, Ministro dos Negócios Estrangeiros. O resto da vida foi passado em França, compondo, dando aulas e tocando, embora nos últimos anos tenha engordado tanto que se lhe tornou impossível chegar com as mãos ao teclado.

[La Mort de Marie Antoinette op.44, por Andreas Staier, em pianoforte da época]

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Václav Tomásek (1774-1850)

Tomásek foi mais um dos grandes talentos musicais nascidos na Boémia, mas ao contrário do “nómada” Dussek passou toda a carreira em Praga. Entre os seus alunos contam-se Jan Václav Vorisek (1791-1825), outro talentoso pianista e compositor boémio, e Eduard Hanslick (1825-1904), que além de pianista e compositor, foi um dos mais influentes críticos do mundo germânico (como opositor de Wagner e paladino de Brahms). Deixou-nos seis Sonatas para piano e 42 Éclogas, repartidas por sete volumes.

[Écloga op.32 n.º 5, por Rudolf Firkusny, em 1972]

Johann Nepomuk Hummel (1778-1837)

Hummel nasceu em Pressburg (então parte do território austríaco – hoje é a cidade eslovaca de Bratislava) e foi um menino-prodígio que, aos oito anos, recebeu aulas do ex-menino-prodígio Mozart e que, tal como Mozart, o pai exibiu em tournée pela Europa, entre 1778 e 1793 (aproveitou a passagem por Londres para receber aulas de Clementi). Em Viena, Hummel prosseguiu a formação musical com Hadyn, Salieri e Albrechtsberger – nas aulas deste último foi colega de um rapaz um pouco mais velho que viera de Bona, um certo Beethoven, de quem se tornou amigo. Em 1804 tornou-se primeiro violino da orquestra dos príncipes Esterházy, cujo director era, formalmente, Haydn, mas cuja saúde o impedia de desempenhar as funções. Hummel foi nomeado Kapellmeister dos Esterházy em 1809, após o falecimento de Haydn, mas foi despedido dois anos depois, por negligenciar os seus deveres. Hummel foi Kapellmeister em Stuttgart (1816-19) e Weimar (1819-37) e fez tournées pela Europa, mas a partir de 1832 o declínio da saúde fez com que a sua actividade se reduzisse significativamente.

Deixou abundante obra para piano, orquestra e música de câmara (127 números de opus e muitas obras não publicadas em vida) e foi professor de Carl Czerny, um pedagogo e compositor que todos os alunos de piano de hoje conhecem bem (de mais).

[I andamento (Allegro con brio) da Sonata para piano n.º 2 op.13, por Dino Ciani, em 1966]

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John Field (1782-1837)

Nasceu em Dublin e evidenciou talento precoce, estreando-se em público aos nove anos. Aos 11 mudou-se, com a família, para Londres, onde se tornou num dos alunos favoritos de Clementi e trabalhou como demonstrador dos pianos fabricados pela firma deste; foi também Clementi quem lhe publicou as primeiras obras, em 1795. Quatro anos depois, com 16 anos, Field estreava o seu Concerto para piano n.º 1. Em 1802 Clementi empreendeu uma viagem de negócios à Europa continental e levou consigo Field, que aproveitou a passagem por Viena, para receber lições de Albrechtsberger. Em 1803, Clementi regressou a Londres, mas Field ficou em S. Petersburgo, que se tornaria na sua base de operações, fazendo várias tournées pela Europa. As viagens constantes e a vida desregrada acabaram por debilitar-lhe a saúde – faleceu em Moscovo, em resultado de uma pneumonia.

Deixou sete concertos para piano e numerosas peças para piano solo, entre as quais estão 18 Nocturnos que prefiguram os de Chopin, e é visto como precursor da escola romântica de piano.

[Nocturno n.º 1 (1812), por Miceal O’Rourke, do álbum The Complete Nocturnes (Chandos)]

Ignaz Moscheles (1794-1870)

Mais um boémio: nasceu em Praga numa família judia de língua alemã e razoavelmente abastada. Após a morte do pai, em 1808, foi, aos 14 anos, estudar com Albrechtsberger em Viena. Pela mesma altura iniciou carreira como concertista (após ter mudado o nome de Isaac para Ignaz, pois ser-se judeu não favorecia a carreira em área alguma) e viajou pela Europa. Foi amigo de Beethoven (que ficou muito bem impressionado com os seus dotes musicais) e rival de Hummel, Johann Baptist Cramer e Friedrich Kalkbrenner, os grandes virtuosos do piano de então. Após ter feito sensação pela Europa fora (foi ao ouvi-lo em Carlsbad que o jovem Robert Schumann decidiu ser também um virtuoso do piano), em 1821 estabeleceu-se em Londres, que se tornaria na sua base até 1846 (e onde fez amizade com Clementi, que é o elo de união de boa parte dos compositores desta lista). Numa viagem à Alemanha, em 1824, deu lições de piano aos dois jovens e talentosos filhos de uma família de banqueiros judeus: Felix e Fanny Mendelssohn-Bartholdy – a amizade com Felix duraria até à morte deste, em 1847. Quando em 1843 Felix Mendelssohn fundou um conservatório em Leipzig conseguiu persuadir o amigo Ignaz a tornar-se professor lá. Moscheles mudou-se para Leipzig em 1846 e aí ficou, como professor de piano, até à morte.

Deixou-nos 142 obras, entre as quais estão oito concertos para piano e numerosas obras para piano solo.

[Sonate Melancólique, por Noël Lee]

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Charles-Valentin Alkan (1813-1888)

Nasceu em Paris de pais judeus – o seu nome de família era Morhange, que Charles-Valentin achou prudente substituir pelo mais neutro Alkan (que era o nome próprio do pai). Alkan entrou no Conservatório com apenas seis anos e não tardou a ser distinguido com prémios e com o aplauso do público – parecia estar destinado a uma brilhante carreira de concertista, mas os acessos de melancolia fizeram com que as suas aparições públicas se tornassem cada vez mais esporádicas, até que, a partir de 1848, desapontado com o facto de o Conservatório ter nomeado Daniel Auber para a chefia do departamento de piano – um lugar que ele ambicionava –, passou a viver em reclusão, dedicando-se exclusivamente às suas composições, quase todas para piano solo e muitas delas de um virtuosismo esfuziante. Com excepção de uma viagem a Londres, nunca deixou Paris. Foi amigo de Chopin e Delacroix, foi elogiado por Liszt e conviveu com muitos dos nomes sonantes do meio cultural parisiense. Em 1873 regressou, inesperadamente, às actuações em público, embora o estado de saúde dos seus nervos não desse mostras de ter melhorado nos anos passados em reclusão.

[III andamento do Concerto para piano solo (n.º 10 do op. 39), por Marc-André Hamelin, um dos grandes paladinos da música de Alkan, numa gravação de 1992]

Anton Rubinstein (1829-1894)

Mais um grande pianista romântico de ascendência judaica, nascido em Vikhvatinets, então parte do Império Russo e hoje na região da Transnistria, disputava entre a Moldávia e a Rússia. Estreou-se em público aos nove anos em Moscovo, para onde a família se mudara entretanto. Aos 11 anos, acompanhado pelo professor de piano, viajou até Paris a fim de se inscrever no Conservatório mas foi recusado. Na adolescência fez várias tournées pela Europa, por vezes com o irmão mais novo, Nikolai, e acabou por tornar-se uma figura proeminente da vida musical do seu país, fundando a Sociedade Musical Russa (1859) e o Conservatório de S. Petersburgo (1862). Numa época em que o programa dos recitais de piano era constituído sobretudo por obras recentes, lançou os “Concertos Históricos”, que davam uma panorâmica da música para tecla desde o século XVI. Foi aclamado como um virtuoso capaz de rivalizar com Liszt e fez numerosas tournées pela Europa e pela América. Deixou obra vasta em todas as áreas – seis sinfonias, cinco concertos para piano, dezenas de peças para piano solo – que são hoje raramente tocadas.

[Melodia op.3 n.º 1 (c. 1852), por Shura Cherkassy]

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Louis Moureau Gottschalk (1829-1869)

Nasceu em New Orleans, de ascendência mista judia e crioula. Cedo revelou o seu talento e como os EUA de então não podiam proporcionar-lhe estudos musicais avançados, aos 13 anos rumou a Paris, para se inscrever no Conservatório. A instituição – um bastião de conservadorismo e preconceito – rejeitou-o sem se dignar ouvi-lo e Pierre Zimmerman, um dos seus mais marcantes professores de piano, alegou que nunca a América, terra de selvagens e máquinas a vapor, poderia gerar um pianista de jeito. No entanto, Chopin, Liszt e Alkan foram unânimes em reconhecer o seu génio. Gottschalk voltou a atravessar o Atlântico e lançou-se numa incansável série de tournées – em 1865 declarou ter feito 150.000 Km de comboio e dado 1000 concertos. Em 1865, um caso escandaloso com uma aluna de piano forçou-o a abandonar os EUA e a viajar pela América do Sul – morreu no Rio de Janeiro. Muita da sua obra, tingida por tradições musicais americanas, perdeu-se, mas mantém alguma popularidade nas Américas, sendo raramente tocado deste lado do Atlântico.

[Danza op.33, por Alan Mandel. A peça, composta em Porto Rico, em 1857-59, recorre a melodias inspiradas na música tradicional cubana]

Nikolai Medtner (1879-1951)

Nasceu em Moscovo e estudou no Conservatório dessa cidade, tendo concluído o curso aos 20 anos e arrebatado o prémio Anton Rubinstein. Parecia destinado a uma brilhante carreira de concertista, mas em vez disso preferiu consagrar-se à composição e ao ensino. Em 1921 deixou a União Soviética e empreendeu várias tournées pelo mundo – algumas delas arranjadas pelo seu amigo Rachmaninov, com quem partilhava o virtuosismo pianístico e um gosto manifestamente conservador. Em 1936, acabou por assentar residência em Londres, onde era apreciado. Nunca conseguiu alcançar o reconhecimento que lhe permitisse levar uma vida desafogada – até que, em 1949, encontrou um mecenas no Marajá de Mysore, que financiou várias gravações por Medtner das suas próprias obras. A sua obra – três concertos para piano e abundante música para piano solo – não tem tido muitos defensores e é vista por vezes como “Rachmaninov de segunda categoria”.

[“Skazka” (Conto de Fadas) op.20 n.º 2 “Campanella” (1909), num registo realizado pelo próprio compositor em 1930]

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