Carminho
© Inês Gonçalves
© Inês Gonçalves

Carminho: “O fado é tão pop como o hip-hop. Ou a pop”

"Maria" é o primeiro nome da fadista Carminho e o título do seu novo disco. Fazemos as apresentações

Luís Filipe Rodrigues
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Carminho quis perceber o que era para ela o fado, e até onde é que o que género podia ir sem se afastar muito da sua matriz tradicional. O resultado pode ouvir-se em Maria, o seu novo disco de originais e o ponto de partida para uma conversa sobre o que é, afinal, para ela o fado. 

Os títulos dos teus discos com repertório original têm sempre apenas uma palavra: Fado, Alma, Canto. Agora Maria. É premeditado?
Não penso muito nisso. De alguma maneira sempre achei que uma palavra era algo mais forte, só que às vezes é difícil perceber como é que uma palavra resume um disco. Neste caso até achei que o título não ia ter só uma palavra, até para contrariar essa tendência. Mas os nomes depois impõem-se.

Por acaso, o disco anterior surpreendeu--me por não se chamar apenas Jobim.
Bela graça [risos].

E porquê Maria?
Porque é o meu nome, Maria do Carmo. E é o nome por excelência de todas as mulheres.

Também de alguns rapazes.
Exacto. É um nome tradicional português, que atravessa a nossa história e continua super-actual e contemporâneo. E este também é um disco de fado onde eu vou buscar a minha tradição, continuando todavia a querer ser contemporânea e actual. Gosto deste título por isso. Porque, apesar de ter o meu nome, não é apenas sobre mim.

É um trabalho muito pessoal. Assinaste a letra ou a música de mais de metade das canções, produziste, ajudaste na mistura, até tocaste guitarra. Quiseste controlar todos os aspectos do disco?
Aconteceu tudo de forma muito natural. Quando comecei a pensar no repertório que queria cantar, comecei a pensar sobre o próprio fado. Não foi o começo de um disco, foi o começo de um pensamento sobre fado, sobre aquilo que andava a fazer e aquilo que o próprio género tem vindo a fazer. E uma das coisas que eu percebi é que começou a haver muita adição de elementos. Então decidi fazer um pensamento de subtracção. E como o disco tinha muito a ver com a minha infância e com as minhas origens foi natural que eu tomasse conta do que estava a acontecer na música.

Nunca pensaste chamar outro produtor?
Ainda pus em consideração alguns nomes, mas depois perdi o pudor e reconheci que eu sei o que gosto de ouvir e o que não gosto de ouvir, o quero dizer. E o fado, pelo menos para mim, é um estilo que não é necessariamente a música. Tem muito a ver com emoção, com uma transmissão de emoções entre as pessoas em comunidade. Isso, a meu ver, é mais importante do que se está este instrumento ou o outro a tocar.

A primeira canção do disco, “A Tecedeira”, é um belo exemplo disso. Aquilo à partida não seria um fado, porque não havia guitarra portuguesa, nem viola. Apenas a tua voz, a cappella. Mas se aquilo não é fado, nada é fado.
Obrigada.

Não há subtracção maior do que essa. Tiraste tudo ao fado menos a tua voz.
Porque a sensação emocional para mim é que é o fado. É o elemento que liga as gerações todas, até aquelas que fizeram grandes transgressões, ou melhor, aventuras com outros instrumentos e as que foram muito puras e puristas, até críticas. Estes dois lados são fundamentais para o fado continuar vivo.

Quando é que escreveste “A Tecedeira”?
Não faço ideia. As coisas vão surgindo naturalmente enquanto uma pessoa está a pensar. Por exemplo, estava a pensar acerca da instrumentação e percebi que na história da música de raiz, como o flamenco e o tango, há instrumentos que parecem tradicionais e que estiveram lá sempre, mas que aparecem com dois artistas relativamente recentes, o Paco de Lucia e o Piazzola. Um introduziu o cajón no flamenco e outro o bandoneón no tango. São dois elementos que aparecem na senda do que já lá existia e vão reforçar isso, mas que não ultrapassam nem chocam com a musicalidade do género.

Isso faz-me pensar na guitarra pedal steel, que é um instrumento que não soa fora de lugar no teu disco, apesar de não haver coisa menos fadista. Como é que achaste que aquilo fazia sentido ali?
Quero continuar a preservar os elementos e os valores que eu aprendi com o fado: a importância da voz, da verdade e da palavra. Mas depois há outros elementos. Um deles é o ambiente. Quando o fado é retirado às casas de fado e colocado em estúdio perde-se uma coisa muito importante que não é música, mas que é som: o ambiente da casa de fado. E eu quis reinterpretar e estilizar esse som, esse ambiente. Quando ouvi o Filipe [Cunha Monteiro] a tocar aquela pedal steel com arco, num concerto de Tomara em Lisboa, há um ano, fiquei fascinada e percebi que era daquele som que estava à procura. Depois ele veio fazer um primeiro tema e correu tão bem que até acabou por entrar noutros.

O disco foi gravado ao vivo no estúdio. Porquê?
Para haver aquela vertigem do erro. Que é algo que faz parte da verdade, faz parte do ser humano, faz parte do fado. Da fragilidade e da beleza do fado.

E como é aparece aqui a guitarra eléctrica? Já sabias tocar?
Eu não me sei acompanhar. Nem no piano, nem na guitarra, que são dois instrumentos que eu uso para compor. Mas um dia em que peguei numa das guitarras eléctricas do Filipe e ela, aquela guitarra, ensinou-me a tocar. Estava ali a cantar e a tocar, e o Artur David, o técnico que gravou o disco, pôs a gravar. Depois disse-me para ouvir a gravação e eu gostei muito. Pedi-lhe para me deixar voltar a tocar a canção, e em três takes consegui gravá-la.

Mas como é que consegues compor as canções na guitarra, se não sabes tocar?
Eu sei as notas, mas estar a música toda a cantar e a acompanhar-me é difícil. Conseguiria se fosse menos preguiçosa – aliás, nem é ser preguiçosa... Se tivesse mais tempo para trabalhar mais.

Não há mal nenhum em ser preguiçosa.
É um bocado preguiça [sorri].

Tu já escreves para ti há muitos anos, mas não me lembro de teres escrito para outras pessoas. Porquê?
Não sei. Se calhar, como escrevo pouco e foram tudo coisas pontuais, as pessoas nem sabem que já fiz algumas coisas para mim. Por isso nunca me pediram. Até já ofereci duas ou três canções a outros músicos que não foram usadas. Mas é muito raro fazê-lo.

O Filipe Cunha Monteiro também escreve canções. Pediste-lhe alguma?
Não. Até porque quando o conheci já tinha o repertório construído.

Isso quer dizer que já tinhas tudo escolhido há um ano?
Algumas canções não entraram no disco, mas sim. Já tinha o repertório e andava sobretudo a perceber como é que queria que as canções se materializassem.

O que é que te levou a escolher estas canções e não outras para o disco? Por exemplo, o “Pop Fado” do António Calvário.
Encontrei aquele fado no meio das minhas pesquisas e achei que era espectacular. E muito engraçado. Ri-me muito com aquele fado. Sobretudo de mim, e do facto de passados 60 anos continuar a ser um tema pertinente. Continua-se a falar sobre o fado já não ser o que era dantes, portanto aquela canção ainda faz sentido. Fala de mim e do panorama do fado, porque a questão da pop está sempre presente no dilema de um fadista. Hoje, em Portugal, o fado é tão pop como o hip-hop. Ou a pop. E isso é que é engraçado.

Conversa fiada

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