Bowie 70 é um disco com muitas camadas e dimensões, tal como o músico que homenageia. É um álbum de David Fonseca, que fez todas as versões e tocou todos os instrumentos. Mas não só. É uma celebração da diversidade das vozes portuguesas de hoje, que acompanham o maestro Fonseca. Mas também é mais do que isso. É uma elegia cantada por mulheres e homens que reconhecem a influência de Bowie e dão voz à música dos Davides. E isso talvez seja o mais importante.
Falámos sobre isto tudo com David Fonseca. Falámos sobre David Bowie. Falámos sobre Bowie 70.
Como é que soubeste da morte do Bowie? Como é que recebeste a notícia?
De uma forma muito moderna. Tinha tido uma noite muito longa, a trabalhar, e deitei-me tarde. Estava na cama e o telefone teve um daqueles avisos, onde se lia: “David Bowie morreu.” Eu pensei: “Esta malta passa-se, isto não é verdade. Que parvoíce.” E fui dormir. Depois o telefone começou a tocar insistentemente a partir das dez da manhã e vi que alguns jornalistas me estavam a ligar. Foi aí que percebi que aquilo devia ter mesmo acontecido. Fiquei triste, obviamente. Estamos a viver um momento, e o ano passado foi pródigo nisso, em que muitas das nossas referências musicais enquanto miúdos desaparecem. E é um choque. Quando essas pessoas desaparecem, uma pessoa tem sempre a sensação, ou pelo menos eu tenho, que o mundo fica mais pobre.
E como é que que nasceu este disco, o Bowie 70?
Isto surge num almoço simples entre mim e a Paula Homem, a presidente da Sony. Ela queria fazer algo com o repertório do Bowie e artistas portugueses, mas não sabia exactamente o quê nem em que formato. E propôs-me a mim pensar sobre isso, sobre um disco de tributo. Eu disse logo que não, porque não conseguia entender como se fazia algo desse género. E achei que o repertório do Bowie e que o trabalho... Eu endeusava aquilo e achava que seria difícil entrar por esse território. Que não havia nenhuma forma de o fazer.
Mas depois...
Depois a curiosidade musical tomou conta de mim e fui para casa fazer versões, procurar soluções. Sem lhe dizer nada. Fiz uma série de versões de que gostei imenso e que gostei de fazer, e passado um mês ou dois liguei-lhe a dizer que ia fazer qualquer coisa relacionada com esse universo e depois lhe dizia alguma coisa.
Disseste que endeusavas o David Bowie. Consegues dizer quando é que o começaste a ouvir?
A primeira vez que o ouvi, e que o vi, foi num videoclipe. O “Blue Jean”, acho eu. Depois disso só na adolescência é que comecei a tentar perceber quem era a figura e a investigar tudo para trás. Mas o primeiro Bowie que eu conheci foi o Bowie dos anos 80, como quase toda a gente. “Blue Jean”, “Let’s Dance”, “Loving the Alien”, “China Girl”...
Quase toda a gente é como quem diz. Isso parece-me uma coisa geracional. Eu sou mais novo do que tu e o meu primeiro Bowie é o dos anos 70.
Ah, claro. Mas tu sabes que na minha geração o Bowie era muito popular. Estava na televisão. Por isso o meu primeiro contacto foi com a figura, e só mais tarde é que apanhei o Bowie anterior. E esse Bowie era muito diferente daquele que eu conhecia. Percebi que o tipo afinal tinha coisas bem diferentes antes disso. Dessa coisa mais popularucha. De que eu gosto muito, atenção. Sei que há quem não goste dessa fase, dos anos 80, mas eu gosto por razões pessoais. Acho que teve coisas tão interessantes como nos 70s. e acho que depois tem coisas interessantíssimas nos anos 90 e 2000. Os dois últimos discos são do melhor que ele fez. O Blackstar então é mesmo fabuloso.
Como é que decidiste, num primeiro momento, que versões é que ias fazer?
Fiz uma lista de todas as canções de David Bowie de que me lembrava de cabeça. Ou seja, em vez de tentar ir buscar uma a cada disco ou o que fosse, fiz como se fosse um disco para mim. As minhas versões pessoais. Aquelas de que gostava mais, as canções que me disseram alguma coisa ao longo dos anos. Acho que a única maneira de fazer uma versão de outra pessoa é se ela significar algo para ti primeiro. E listei 25 canções do Bowie de que me lembrava de memória. Depois fiz uma lista de cantores portugueses cujas vozes eu identificava com aquele universo.
Como é que escolheste quem é que cantava que canção no disco?
Quando vou fazer uma versão eu não sei o que vai acontecer. Houve canções que passaram por várias versões até eu achar uma que fizesse sentido, que me deixasse contente. De seguida olhava para a voz e pensava quem podia fazer essa versão. E depois modelava as canções em direcção a essa voz. Foi assim que fiz com todas.
E depois convidavas os cantores...
Fazia uma versão e depois falava com a pessoa. E era esperar que eles aceitassem fazê-lo. Repara que fiz este trabalho sem saber se as pessoas iam aceitar cantar as canções, porque durante muitos meses este projecto só existia na minha cabeça. Mas acabaram todas por aceitar.
Tens uma versão da “Absolute Beginners” no disco, cantada pelo Tiago Bettencourt, que um ano antes tinha gravado essa canção e metido no Youtube. Já tinhas ouvido a versão dele quando o convidaste?
Sim. Percebi que ele gostava da canção e, como a “Absolute Beginners” era uma das que eu queria fazer, disse logo que ia ser para o Tiago. Quis fazer uma versão minha para ele cantar e acho que a minha versão é algures entre a versão dele e a original. Fica a meio caminho entre as duas. Serve um bocadinho os mundos todos.
O alinhamento junta cantores de várias gerações e com diferentes escolas musicais, do Rui Reininho à Catarina Salinas, dos Best Youth. Essa abrangência foi consciente?
Aquilo que liderou a escolha não foi nem 1) a idade; nem 2) o género que elas cantavam. Foi completamente diferente. A minha ideia foi trazer pessoas para o projecto que fossem cantores, na extensão mais simples da palavra. Verdadeiros cantores, que tivessem uma personalidade vocal só sua. Foi nesse sentido que escolhi as vozes. Tanto que há aqui artistas muito mais alternativos, outros menos... O que mais gosto é de encontrar pessoas numa latitude tão diferente ao longo do mesmo disco. É uma coisa maravilhosa, mas que nem sempre acontece. Nós temos talento vocal por metro quadrado como quase em nenhum outro país do mundo. É impressionante o número de vozes que temos – e o seu talento – dado o tamanho do país. Tanto que o mais difícil foi deixar algumas vozes da minha lista inicial de fora.
Tu fizeste todas as versões e gravaste quase todos os instrumentos no disco. Porque decidiste tocar tu tudo?
Em primeiro lugar, porque foi mais fácil do ponto de vista de produção. Não tinha de chamar outros músicos e era um projecto muito específico, de constante procura. A certa altura tive uma ideia muito específica da forma como isto ia funcionar. Todos os temas, no fundo, eram uma espécie de um dueto. Se eu estivesse na parte instrumental, e a fazer os backing vocals e tudo isso, acabava por ter só duas pessoas presentes em cada canção. Achei que podia dar uma abordagem interessante. E foi muito divertido de fazer.
Falaste em duetos, mas há uma canção que é só tua, a “Lazarus”. Porquê essa e não outra qualquer?
Porque infelizmente houve uma pessoa que não pôde aceitar, por várias razões. E então herdei essa canção. A ideia inicial era nem participar no disco em termos vocais. Mas não quis convidar outra pessoa porque eu tinha pensado numa canção para cada pessoa em específico.
Podes dizer quem era a pessoa?
Não, acho que é indelicado.
Ok, é justo. E porquê estas 13 canções, de entre 25? Há várias escolhas óbvias que ficaram de fora do alinhamento (a “Young Americans”, por exemplo)…
Nalguns casos porque pura e simplesmente não gostei das versões que fiz. E então voltei atrás. Não consegui fazer uma versão que fizesse jus à ideia de versão e à ideia de transformar a canção. Da que tive mais pena foi da “Loving the Alien”, que é uma canção que adoro, mas não consegui levar para nenhum sítio de que gostasse. Outra foi a “Sound and Vision”. E, lá está, a “Young Americans” também estava na lista, mas dessa nem cheguei a tentar fazer a versão. Isto foi tudo feito em seis meses, e eu fui indo às canções à medida que elas me surgiam. Não deu para ir a todas. Tenho pena de não ter feito as 25 mas era impossível. Demoraria pelo menos mais 6 meses.
Gravaste alguma canção que não tenhas usado?
Não, se estava contente com ela usei-a.
E calculo que ninguém tenha cantado uma canção que ficou de fora.
Também não. Funcionou tudo. Era daquelas coisas que, em teoria, podia não ter funcionado. Mas acho que era difícil isso acontecer porque os cantores eram todos muito bons. Quando se tem cantores deste calibre só com muito azar é que as coisas correm mal. Como é que pode correr mal com um cantor com um imprint vocal como o Rui Reininho? É impossível. Ou o Zambujo. Ou o Camané. São todos fabulosos. Se corresse mal seria sempre do meu lado.
Sei que tocaste algumas versões de David Bowie naquela celebração no CCB , também chamada Bowie 70, com o Nuno Galopim, o João Lopes, o David Ferreira e a Xana. Foram iguais às que se vão ouvir no disco?
Esse encontro estava marcado muito antes desta ideia do Bowie 70 ter aparecido. E o que eu fiz lá não foi bem a mesma coisa, foi muito diferente do que está no disco. As versões do disco foram pensadas especificamente para as vozes que as cantaram, e no CCB fiz uma coisa diferente. Com uma abordagem mais pessoal, mais simples, mais despida.
Por falar em tocar em vivo, estás a pensar apresentar o disco em concerto?
É a pergunta que mais me fazem desde que começámos a fazer isto. Quando fiz o disco isso nunca esteve em cima da mesa, não foi essa a ideia. Entendo que fazer um espectáculo desta natureza seja apelativo, pelos nomes envolvidos, etc. Mas para ser sincero não há nada programado nesse sentido. O que não dizer que não venha a haver, porque acho a ideia apelativa. Por um lado é complicado, em termos de produção, mas não vou dizer que não. Até porque já passei por uma coisa similar.
Com os Humanos...
Exacto. Com os Humanos também pensei que não haveria essa possibilidade, porque era um projecto muito complicado de pôr em pé. Portanto não sei. Vamos ver o acontece.