Márcia tem aquele talento – mais raro do que se supõe – de partir da sua intimidade para criar objectos de valor universal. E ao quarto álbum, a escritora de canções expõe-se mais do que o costume.
No mais recente disco, The Animal Spirits, o DJ e produtor de electrónica James Holden virou as costas à música de dança e esculpiu um som hínico, ancorado em free jazz, pós-rock e músicas africanas. Falámos antes do concerto de quarta-feira, na Culturgest.
Já foste do trance, mas a tua música evoluiu e mudou muito desde então.
Ainda sou. Só que o trance é muito mais do que aquilo a que as pessoas chamam “trance” – vai do Steve Reich à música gnawa marroquina, da Éliane Radigue ao John Surman, do Pharoah Sanders à folk escocesa, etc. Não vejo uma grande diferença entre o euro-trance de meados de 90s e estas coisas. Induz tudo a mesma sensação, o mesmo estado de espírito.
Mas continuas a ouvir trance?
Sim, mas segundo a minha definição, e não propriamente o estilo musical a que associamos esse nome. À medida que os vários subgéneros da música de dança vão envelhecendo, deixam de se fazer canções novas – as chamadas novas músicas não passam de versões de velhas ideias. Isto não é um problema se não tiveres ouvido todas as velhas ideias, mas passado algum tempo é altura de avançar.
Tu designas The Animal Spirits como um disco de folk-trance. O que entendes por isso?
É música hipnótica. Para mim é isso que é o trance.
É diferente de quase tudo o que fizeste antes. O que inspirou essa mudança?
Faz parte de um longo processo evolutivo. O meu álbum anterior abriu a porta para tocar com o [baterista] Tom Page, e gostei muito de tocar ao vivo com ele. Essa experiência deixou-me tão feliz que percebi que esse tinha de ser o ponto de partida para o disco seguinte.
Quais são, para ti, os principais pontos de contacto entre The Animal Spirits e o teu álbum anterior, The Inheritors?
Têm muito em comum: a tonalidade, a mesma onda hipnótica. Mas The Animal Spirits é um passo em frente em relação a isso, pela maneira como foi feito – sete pessoas a tocarem juntas na mesma sala vão obrigatoriamente fazer algo que uma pessoa sozinha nunca conseguiria fazer.
Gravaste o disco ao vivo no estúdio. Porquê?
Imagina que não tínhamos gravado assim, e que cada um tocava a sua parte e depois juntávamos tudo, como normalmente se faz. Nesse caso, não há um diálogo na música, são só pessoas a lerem um guião. Mas quando toca toda a gente ao mesmo tempo fica tudo mais complexo e interligado, toda a gente ouve tudo à medida que está a acontecer e responde a isso. É uma conversa entre músicos, e isso é mais especial do que qualquer outra coisa.
Oiço, no álbum, ecos do jazz, e mesmo de algum free jazz. Concordas?
Sim. Mas é mais jazz espiritual do que free jazz. Malta como o Don Cherry e o Pharoah Sanders, que faz música hipnótica e meio trance.
O disco foi gravado durante a campanha do Brexit. Como é que isso afectou o vosso trabalho?
Na altura estávamos contentes por fazer qualquer coisa de belo e ignorar esta idiotice. Acho que é mesmo a única coisa que podemos fazer.