Márcia tem aquele talento – mais raro do que se supõe – de partir da sua intimidade para criar objectos de valor universal. E ao quarto álbum, a escritora de canções expõe-se mais do que o costume.
Os Diabo na Cruz passaram dois anos afastados dos palcos, mas não estiveram parados. Aproveitaram para lançar uma caixa de CDs com uma retrospectiva do seu percurso, no ano passado, um disco ao vivo, já este ano, e por fim um novo álbum, Lebre, que acaba de sair. Falámos com Jorge Cruz antes da sua apresentação, esta quinta-feira, no Coliseu de Lisboa.
Estiveram uns anos parados. O que é que se passou?
Passámos oito anos na estrada, sempre a dar tudo. Sempre no vermelho. Há quatro anos de diferença entre os dois últimos álbuns, mas dois deles foram de estrada intensa. Depois fizemos uma paragem para descansar e, mais tarde, preparar este disco. Isso levou tempo, porque queria fazer as coisas bem.
O que é andaste a ouvir nessa pausa?
Música que não tinha tido tempo para ouvir. Quando uma pessoa está sempre em cima da música, fica um bocado farta, já não tem a mesma paixão. Aproveitei para recuperar o amor por ouvir coisas. Eventualmente, tive vontade de estudar a história da música americana do interior. A música dos Apalaches, as recolhas que levam ao Dylan, ao Cash. E o mesmo com a música portuguesa. Tinha 1000 e tal recolhas num DVD. Muita coisa. Ouvi tudo e depois fiz uma compilação das músicas de que gostava mais, e andar a ouvir aquela música toda pôs-me no sítio em que eu pretendia. Não só para compor este álbum, mas também para outras ideias que eu tenho aí.
Este disco parece muito focado na ideia de raízes, de pertença. Concordas?
Sim. Acaba por ser o conceito unificador. Até que ponto podemos procurar laços de pertença e o que é que eles significam para nós, neste momento em que não consegues comprar casa no centro das cidades; em que tens a internet; em que eu estou a viver em Portugal, mas podia estar noutro lado qualquer. As músicas começaram a ser povoadas por isso. O que leva obviamente à família, e obrigou-me também a ir escrever para a minha terra natal e sobre a minha terra natal.
E tu já não vives em Lisboa. Porque é que te foste embora?
Eu estava a viver na margem sul na altura em que me fui embora, há três ou quatro anos. Sabes que eu não sou de cá. Cresci na Praia da Barra e quando me tornei mais adulto tive uma grande paixão pelo sul, apesar de também ter vivido no Porto. E profissionalmente a relação com Lisboa tornou-se inevitável. Mas a minha intenção, a partir do momento em que tive um filho, foi levá-lo para um sítio mais calmo quando ele chegasse à idade da primária. Porque a vida na cidade não é aquela com que me identifico. Com que eu cresci. Então decidimos viver a uma hora de Lisboa, numa zona pacífica, de aldeia.
Este disco parece-me mais rural, à falta de melhor palavra. Isso tem a ver a com essa mudança de ares?
Aconteceu espontaneamente. No Roque Popular houve uma vontade grande de mergulhar no Portugal profundo e justificar a ideia da banda falando das Beiras e de zonas do país em específico. Agora foi tudo mais natural. Está tudo mais pacificado.
Vocês passaram muito tempo em digressão e foram a sítios, no interior, onde vão poucas bandas como vocês. Como é que são recebidos nesses lugares?
Sabes que quando um sítio não tem condições nenhumas, mas o pessoal fez um grande esforço para estares lá, não estás só a dar um concerto. É mais do que isso. Estás a tentar criar uma linguagem, para dialogares com as pessoas e perceberes as suas reacções, porque aquilo está a mexer com coisas que vêm da memória de todos. E nós queríamos sair de lá a achar que os tínhamos conquistado a todos e que aquilo tinha feito todo o sentido. Era uma luta constante.
E tocar em Lisboa não é uma luta?
A verdade é que no CCB ou no Coliseu as pessoas vão reagindo de maneira diferente, mas não reagem de uma forma assim tão diferente. É possível criar uma linguagem que todos conhecem, em qualquer lado do país.