No Disco Tinto, editado a 15 de Março, Éme reinventa-se como contador de histórias alheias. E continua a ser um cantor folk como existem poucos em Portugal.
Maria Reis fez 30 anos em 2023. Confronta-nos com este número, redondo, na quarta faixa de Suspiro..., novo e desarmante disco, o mais longo que lança desde o tempo em que tocava com a irmã Júlia nas Pega Monstro. Em “30”, como nas restantes músicas, a cantora e compositora expõe as suas inseguranças para as vermos e nos revermos nelas; fala de ciúmes e de terapia. Acaba assim: “criança, adolescente e de repente nos 30/ perto do fim, o cansaço, o fumo”.
A esperança média de vida em Portugal ronda hoje os 80 anos e tem tendência para aumentar. Ainda não viveu, por isso, nem metade do que provavelmente vai viver. E já tem um dos corpos de trabalho mais impressionantes da música portuguesa. Desde o início da década passada, gravou perto de uma centena de canções com as Pega Monstro, noutras bandas e a solo, sem nunca estagnar, nem fazer mais do mesmo. Quando achamos que não se pode superar, como depois do triunfal Benefício da Dúvida (2022), arranja forma de o fazer. Suspiro… está aqui para prová-lo.
Os assuntos sobre os quais versa não são novos. Expõe as suas inseguranças e ansiedades (que também são as nossas), aponta injustiças e recusa-se a aceitá-las. Há mais uma relação que se desintegra perante os nossos ouvidos, e uma busca incansável pela “melhor versão de si” – como cantava em “Desaparece”, peça-chave do álbum anterior e canção-irmã da novel “Metadata”.
Aborda estes temas, contudo, a partir de novos ângulos. Oiça-se o “Fado do Salineiro”, uma história de exploração laboral e vingança resumida em quatro minutos, sem gorduras, nem repetições desnecessárias, canção-ficção com ambiente de western xarém. Ou “Holofote”, escrita de jorro, que começa com uma meditação sobre a violência imperialista e acaba na ideação suicida, a voz a quebrar, as cordas da guitarra a pesarem cada vez mais. Ou ainda “Coisas do Passado”, da qual já tinha sido editada uma versão ao vivo, agora reinventada em estúdio e infectada pela electrónica. Não são casos isolados. Em cada faixa, temos uma nova surpresa, ou escutamos uma palavra que nunca fora cantada assim ou uma solução melódica que ainda não tinha sido encontrada. O indie rock e as músicas tradicionais num diálogo honesto, sempre com a pop à espreita.
Desde o tempo das Pega Monstro que não fazias um disco de longa duração, com este fôlego. Porque é que o Suspiro... ficou tão maior do que os registos a solo anteriores?
Para já, por uma questão de tempo. Desde o Chove na Sala [Água nos Olhos] que andava a fazer um disco por ano. Em 2023 não editei nada, portanto tive tempo para escrever mais. Houve também a oportunidade de [fazer] uma residência no Algarve. E estava muito mal, emocionalmente, a ter um bloqueio criativo. Até estava a questionar coisas fundamentais para mim, incluindo se devia continuar a fazer música. Sentia uma insegurança enorme.
Porquê?
Agora, em retrospectiva, acho que estava a aguentar-me numa situação. E isso não é inspirador. Essa questão é muito íntima, mas também da circunstância. Sentia uma tristeza profunda que causava apatia e falta de motivação, etc. Quando fui para o Algarve, em Março do ano passado, pensei mesmo que não ia conseguir fazer nada. E ia ser uma vergonha, porque a residência – que já estava marcada há imenso tempo – culminava numa apresentação na aldeia onde estava.
Qual era a aldeia?
Odeleite, quase em Espanha. [No município de] Castro Marim. Cheguei lá e, não sei se por estar sozinha, ou por estar só envolvida em mim própria, acabei por compor a maior parte das canções.
Do Suspiro…?
Sim, várias. Fiquei mesmo orgulhosa. Aquilo deu-me confiança e rejuvenesceu qualquer coisa. Porque, desde que comecei a tocar, era a única garantia que tinha. Tudo na minha vida podia estar uma merda: relações, dinheiro, eu própria…
Mas conseguias fazer música.
Sempre foi tipo casa. É onde me sinto mais bonita e confiante, onde falo mais verdade. Onde me sinto mais eu.
“A melhor versão de ti”, como cantas na “Desaparece”.
Ya. Porque a minha vida, fora da música, é sempre um bocadinho desconfortável. Claro que também depende de com quem estou, se estou centrada, se estou a ir à terapia, etc, etc. Mas há sempre um desconfortozinho, não é? Por isso é que o pessoal quer copos.
Continuas a fazer terapia?
Claro.
Lembro-me de, há uns anos, teres feito uma terapia...
Super-hardcore, intensiva.
Exacto. E disseste que tinhas chegado ao final da terapia.
Só que voltei à terapia convencional.
Sentiste que a anterior não funcionou?
Aquilo funcionou perfeitamente. Mas tive que voltar.
Surgiram outras questões.
É como ir ao ginásio. Posso ir ao ginásio e ficar toda fit, no entanto, se não for durante um ano, volta a banha. Neste caso, a banha emocional.
Sei perfeitamente.
Estava só em reacção, a responder a coisas. Não estava a ouvir-me, não estava centrada. Ir à terapia é complicado, porque tens que estar em contacto com lados mais desconfortáveis, mas é super-importante. Apesar de a música ser terapêutica para mim, não substitui isso.
Uma das canções, a “Metadata”, é sobre isso. A música como terapia.
Sim, sim.
Uma tentativa de materializar a dor para ela deixar de estar em ti, e ficar nas canções.
E a terapia [também] é isso, não é?
Um sítio onde vais deixar o lixo. Para não se acumular.
Ou até abrir o lixo e reciclar. Porque não é só dump. Temos que ir lá inspeccionar, se está com restos de molho, se vai para o cartão ou se vai para o indiscriminado... Isso é o mais complicado na terapia a longo prazo: estares ali a mexer no lixo.
Sem dúvida. Nos momentos de crise, é muito fácil ir à terapia.
Porque é específico.
Mas quando não há um problema concreto, quando é só a vida, fica mais complexo.
Porque acabas sempre por voltar às circunstâncias que te são familiares, mas que não são boas ou que não te fazem bem. E é difícil desconstruir o que é familiar, e o que é automático, porque não consegues dizer “isto está mal”.
“A música é terapêutica para mim”
“Metadata” é a chave para decifrar este Suspiro… materializado em álbum. É, simultaneamente, a autópsia de uma relação finda; um confronto frontal com traumas e incertezas que acompanham Maria Reis há anos; e a planta de um projecto de reconstrução interior que estava só a começar quando as palavras e melodias que agora ouvimos foram gravadas. É densa e carrega muita (porém nunca demasiada) informação. Começa em ruínas, todavia recusa-se a ficar no chão: a electricidade que brota dos instrumentos locomove a canção, enquanto a confiança com que são tocados anima e comove quem ouve as suas notas. Três minutos e meio de perfeição indie rock e exultação pop.
Apesar de ser a penúltima faixa, é o desfecho de uma narrativa que se prolonga e desenrola desde “Amor Serpente”. O disco abre numa toada folk carnal e tensa, o relato de uma relação intoxicante em que o amor e o terror – da perda, da impossibilidade da vida continuar igual depois daquela pessoa – se enrolam e confundem. Lentamente, as brechas vão-se revelando e crescendo até que este edifício desaba, na oitava faixa, “RIP”. Um desfecho previsível, mas nem por isso menos custoso.
Não é a primeira vez que isto acontece na vida e na música de Maria Reis – onde continua a ser demasiado fácil ver espelhada a nossa, é um talento. Não obstante, nunca tinha adquirido esta gravidade. Talvez porque ela nunca tinha feito um álbum com esta estrutura e coesão narrativa, em que as canções se sucedem e reflectem como os planos de um filme.
A tua biografia sempre inspirou a música que fazes. Tanto que há dois anos dizias ao Público que “quem entra na tua vida está fodido”, porque vai acabar numa canção. A maior parte do LP é sobre uma dessas pessoas. Ou pelo menos sobre a vossa relação.
Porque sou uma pessoa reactiva. E muitas das canções que estão neste disco resultam desse meu impulso reactivo às situações. Essa relação que atravessa o disco foi algo onde estive mergulhada durante um ano. Parecendo pouco ou não, condicionou-me um bocado.
Este álbum parece-me diferente dos anteriores, porque há uma progressão e a relação vai-se transformando de faixa para faixa. A “Amor Serpente”, a abrir, é muito diferente da “Pico”, ou da sequência final com a “RIP”, a “Obsessão” e a “Metadata”.
Sim, aquilo cronologicamente faz sentido. Mas não é propositado.
Como não?
Por exemplo, eu não queria abrir com a “Amor Serpente”. Achava que era demasiado on the nose e estava desconfortável com o facto de ser logo a primeira. Não só pela canção em si, mas… A ideia apavorava-me um bocadinho.
Porque é que mudaste de ideias?
Quando convidei o Tomé [Silva] para produzir o disco comigo e lhe mostrei as primeiras demos, bastante raw, só com vozes e algumas harmonias de guitarra e voz, a “Amor Serpente” foi aquela com que ele se relacionou mais. Ficou mesmo entusiasmado. O que fez depois foi acrescentar ideias de bateria. A partir daí, foi um processo colaborativo, completamente. No final, ele disse que tínhamos mesmo de abrir com a “Amor Serpente”. Convenceu-me – e ainda bem que o fez. Não havia outra hipótese.
Pois não.
Porque é muito íntima, de uma forma muito expressiva.
E dá o mote para o disco. Mas como é que o Tomé aparece aqui e assume este protagonismo, a produzir e a tocar contigo do princípio ao fim. Sei que ele é produtor de electrónica e que editou pela Rotten \ Fresh. Foi por aí?
Em Setembro, vi um vídeo dele a tocar a “Odeio-Te” na bateria, uma cover. Achei logo que tocava mesmo bem. Mais tarde, percebi que fazia trabalho de produção, em conversa com o [músico e poeta da Cafetra, Miguel] Abras – que o conhecia porque o Tomé faz parte da Tundra, aquele colectivo de Cacilhas, e misturou o disco de Farpas. Ouvi também as músicas dele e curti bué. Depois sonhei que colaborávamos e, no dia seguinte, perguntei ao Abras para engendrar um date a três, só para eu perceber a vibe. Acabámos por falar imenso tempo. Houve logo uma empatia, coisas básicas que para mim são essenciais.
Imagino que seja impossível fazer música como aquela que fazes com um mercenário qualquer. Sem essa empatia e amizade.
Pelo menos, eu não consigo. Em todas as experiências que tive, com o Leio [Bindilatti, ou Rabu Mazda], com o Noah [Lennox, vulgo Panda Bear], com o [B] Fachada, houve sempre uma intimidade, uma componente emocional de amizade. Senti o mesmo da parte dele. Fiquei com a garantia de que era a pessoa certa e convidei-o. E queres saber a parte mais freaky? Quando lhe disse que tinha tido aquele sonho, ele disse-me que teve exactamente o mesmo sonho na véspera de o Abras mandar mensagem. Foi uma cena cósmica qualquer.
Sendo que ele não se limita a produzir, toca mesmo no disco. Só bateria ou mais alguma coisa?
Tocamos os dois tudo.
Tocas bateria?
Não. E ele também não toca guitarra [risos]. De resto, tocamos tudo. Vamos alternando.
Nos concertos de apresentação do disco, no entanto, Maria e Tomé não conseguem “tocar tudo”. A cantora e compositora pretende continuar a tocar sozinha, acompanhada apenas pela sua viola, “à procura de novas interpretações para canções antigas (ou novas), num processo constante de construção” e desenvolvimento artístico. “Mas este disco pedia um power trio, foda-se. E pede. Então convidei o HIFA para tocar baixo”. Isto é, Francisco Couto, que tem desenvolvido uma carreira a solo como HIFA, ao mesmo tempo que acompanha artistas como nëss ou bbb hairdryer.
Maria “conhecia-o vagamente, da noite e dos concertos”. Foi o também músico e crítico Bruno Silva (tcp Ondness), com quem ela tem estado a fazer música e já deu quatro concertos, que lhe sugeriu falar com o baixista. Um e-mail e um ensaio depois, Francisco tinha-se juntado à banda. “Tem a mesma energia que nós. É profissional, querido, responsável. E tem bom gosto”, elogia. “Quando um de nós não está triste, ou cansado, ou whatever, há espaço para isso. Ou para dar abracinhos. O que é essencial.”
“Certas liberdades não estão tão garantidas como se achava”
Há três canções que não se encaixam na narrativa principal do disco. O “Fado do Salineiro”, “Holofote” e “Coisas do Passado”.
Não só.
Há mais alguma?
A “T-shirt”. Foi o primeiro single mesmo por não fazer necessariamente parte dessa história. Sou eu a pensar sobre a pornografia, e sobre como me relaciono com ela. Talvez pelo contexto onde estava inserida, sempre foi uma coisa... Não vou dizer problemática, mas em que penso muito.
Como assim?
Na minha badalhoquice não ser bem aceite. E eu censurá-la, inconsciente e conscientemente. Não só a minha, mas a de todos e de todas. Isso é um pouco conflituoso, dentro de mim própria. Mas gosto desse conflito, porque me permite pensar sobre o que é mesmo meu e o que me é imposto; o que me dá tesão e o que não dá. Qual é a liberdade que tenho. Depois a questão do aborto também entra na canção, porque eu, como pessoa que carrega um órgão que dá para parir, sou forçada a pensar nessas coisas. Em certas liberdades que não estão assim tão garantidas como se achava.
A “Coisas do Passado” também toca nessas questões de género. Durante uns anos parecia que as coisas estavam a melhorar. Ou prestes a. E agora temos homenzinhos a falarem em estatutos da dona de casa e em referendarem a proibição do aborto. Para não falar no resto, que nunca mudou: o assédio, a violência, a desigualdade salarial...
Sempre fui muito céptica em relação a essas vitórias simbólicas e performáticas. Porque estes fascistas e estes homenzinhos sempre estiveram aí.
Mas pelo menos estavam calados.
Politicamente, a acção é a mesma.
Sinto, porém, que depois das eleições mudou qualquer coisa. Isto apesar de não ter sido uma grande vitória. O PSD mal consegue governar. Mesmo a direita toda junta teve um resultado comparável ao do Passos Coelho no tempo da troika.
Nada de especial, mesmo. O problema é a exposição mediática. Há tantos programas de comentário político que é nojento. O fulano x disse isto, e o fulano y aquilo. O que é que isso interessa? E depois a cada proposta do governo têm que falar com todos os indivíduos, de todos os partidos, para saber qual é que é a sua opinião. Isto é um país de opiniões.
Tanto que tens um presidente da República que dava opiniões. E agora um cabeça-de-lista da AD.
Aquele Sebastião, que mandou um sieg heil! Viva a vitória! Sieg heil!
Quando ouvi isso não queria acreditar.
Nunca foi diferente, porém. A diferença é que agora temos mais informação. Sabe-se tudo. E mesmo assim… É como a questão de Israel, apesar de saber-se o que se está a passar, continua.
Às vezes, penso que isso não é inocente – termos tanto acesso à informação e não podermos fazer nada. É um mecanismo de controlo. Querem mostrar-nos que somos impotentes, que não valemos nada, que estamos reféns deles. Como numa relação abusiva.
Claro. Só que não podemos desistir. Por exemplo, na noite destas eleições passou-me tudo pela cabeça. Mas depois comecei a pensar: o que é que sou boa a fazer? O que posso dar? Como é que consigo ajudar, no fundo. Porque acredito que as pessoas querem mesmo ser agentes da sua vida – de uma forma comunitária, envolvente e responsável. Pelo menos, na minha bolha.
“Temos que confiar uns nos outros”
A Cafetra Records, que as irmãs Júlia e Maria Reis fundaram na adolescência, acompanhada pelos restantes membros de Os Passos em Volta e os Kimo Ameba, sempre foi mais do que uma editora. Ao longo dos anos, os membros chamaram-lhe “um culto”, “um gangue”, “um colectivo”. Uma comunidade, no fundo. Que se foi abrindo à medida que o tempo passou. O núcleo duro manteve-se praticamente inalterado, mas foram-se juntando outros músicos e conspiradores aos pioneiros, em bandas e na vida. Inspiraram e dialogaram com colectivos que vieram a seguir e com os que já cá andavam antes, moldando o underground nacional. E alargando o diâmetro das respectivas bolhas.
Os concertos de apresentação do novo álbum são indissociáveis destes diálogos. Cá em baixo, toca ao final da tarde de sábado, 25 de Maio, na Trienal de Arquitectura de Lisboa. A organização é da Cafetra e da associação Filho Único, cujo impacto no tecido cultural lisboeta – e, por arrasto, nacional – a partir dos anos zero é difícil de sobrevalorizar. Já a subida ao Porto vai ter de esperar pelo dia 27 de Setembro, mas está marcada para o espaço da Lovers & Lollypops, editora e promotora fundamental da música periférica portuense e portuguesa ao longo das últimas décadas.
As tuas canções tendem a ser muito pessoais, até íntimas, sem serem solipsistas. Não é difícil quem as ouve rever-se nelas. Como é que consegues este equilíbrio?
Procuro sempre a verdade na minha música. Acho que é a coisa que fala mais com as pessoas. Isso não é fácil de fazer. Às vezes, é mesmo difícil desencantar a verdade. Não só é desconfortável para mim, como para os outros com quem me envolvo.
A verdade costuma ser desconfortável.
Mas é por isso que as pessoas vêm falar comigo. A dizer que se arrepiaram ou que ficaram comovidas. É a única coisa que importa. Não só as pessoas ouvirem a minha música, como relacionarem-se directamente com aquilo que estou a cantar – e que depois já não é mais sobre mim, ou sobre uma pessoa. Já não é sobre nada.
É sobre tudo. A canção que mexe mais comigo, neste disco, é a “Holofote”. Desfaço-me sempre em lágrimas naquela segunda metade. “Eu sei que sou banal, nunca me achei extraordinária/ Só gostava de ser a gaja que eu achava que ia ser/ Com 13 anos, no quarto, a tocar só para mim”.
Isso não é fixe. Mas… é fixe.
É catártico. Porque sou banal, nunca me achei extraordinário. Não sou quem achava que ia ser.
Claro.
E é o que tu dizes: quando escreveste aquilo, era sobre ti. No entanto, quando oiço a canção, não estou a ouvir a Maria. Estou a ouvir-me a mim.
Porque é assim que a gente se relaciona com a música de que gostamos, não é? Com a música e não só. Aquelas experiências que a gente tem quando lê qualquer coisa e sente que já sabia isto ou aquilo, mas ainda não tinha usado aquelas palavras para o expressar.
Mesmo.
A minha música é uma proposta de verdade. Que depois bate de uma forma muito profunda e muito íntima. Esse é o meu objectivo derradeiro. E sei que tenho algum jeito para isso, e para economizar a verdade. É por isso que faço canções. Não sei se conseguiria ser tão verdadeira com mais palavras.
A verdade podia estar lá, mas dificilmente um texto mais longo seria tão universal.
Exacto. Ou eficaz. É mesmo uma questão da eficiência, de economia.
Não é só na música que fazes que sinto isto. Na tua editora, a Cafetra, todos fazem isto muito bem. A vossa música é íntima, sem soar atomizada. É agregadora.
Porque há um compromisso com a vulnerabilidade. Que é algo que procuro e me interessa na música que consumo, na música que eu faço. Em tudo na minha vida.
Este é o 64.º lançamento da Cafetra. Ou pelo menos é esse o número do catálogo…
Confesso que a nossa contagem é um bocadinho esquizofrénica. No início contávamos só as edições físicas, entretanto começámos a contar digitais, e a malta mais atenta queixa-se disso.
O número exacto é irrelevante. O que me interessa é a vossa longevidade. Lançaram a primeira compilação em 2011, com música escrita desde 2008. E continuam a ser as mesmas pessoas que estavam lá, reunidas em Kimo Ameba e Os Passos em Volta, com uma ou outra excepção.
Entrou a Sallim…
E a Moxila, também. Algumas pessoas foram-se desligando um bocado da editora. Porém, o núcleo duro mantém-se. Continuam juntos apesar do dinheiro, das relações amorosas que foram começando e acabando entre os membros, da própria vida. Como é que conseguem?
Passámos por várias fases e tem havido uma construção contínua da nossa dinâmica uns com os outros. Houve uma altura que era um bocadinho culto. Cultish, vá. Não só porque todos andávamos uns com os outros, como estávamos sempre juntos, como rejeitávamos qualquer pessoa que fosse de fora. Só que a vida foi avançando, e tivemos de aprender a lidar com isso, mantendo estas relações intactas – um processo que nem sempre é fácil. Explicares a um amigo que ele está a ser um imbecil, e vice-versa, é difícil. Mas é aí que se constroem relações profundas e verdadeiras.
O problema é que não eram só amigos. Eram também casais. Admiro a capacidade de gerirem os fins e os começos das relações, entre vocês, sem a editora se desintegrar.
Nem sempre gerimos isso assim tão bem. Mas houve um trabalho constante, contínuo, a desenvolver uma dinâmica de grupo. E criámos ferramentas para lidar com certas situações. Até com alguma preguiça ou com a menor disponibilidade das pessoas em certas alturas. Hoje, quando um não pode, o outro pode. Por isso é que eu acredito tanto na cena comunitária e colectiva. Se eu não lavo a loiça, alguém vai lavar por mim. Temos que confiar uns nos outros.
Trienal de Arquitectura de Lisboa. 25 Mai (Sáb). 17.00. 10€