Os equipamentos culturais foram forçados a fechar outra vez. Mas não há desculpa para não ver estas peças de teatro online.
Há quase um ano que as salas de concertos e de clubbing estão a tentar manter-se à tona, face a uma crise pandémica que as impediu de exercer as suas actividades principais ou, em muitos casos, de abrir portas. Apesar de grande parte da população frequentar estes espaços, a música ao vivo continua a ser considerada o parente pobre da cultura, sobretudo quando comparada com as artes performativas, o cinema e as artes visuais, inclusive no âmbito dos apoios públicos. Para contrariar essa percepção generalizada, e demonstrar a relevância cultural, social e económica destas casas, nasceu a Circuito, a primeira e única associação portuguesa de salas e clubes com programação própria de música ao vivo. Actualmente, é constituída por cerca de 30 espaços de todo o país: entre eles, Musicbox, Lux, Damas e B.Leza em Lisboa; Maus Hábitos, Passos Manuel e Ferro Bar no Porto; Salão Brazil em Coimbra; Sociedade Harmonia Eborense em Évora; ou Bang Venue em Torres Vedras.
Ao todo, em 2019, as salas associadas à Circuito promoveram 7537 actuações musicais, envolvendo dezenas de milhares de artistas e outros profissionais do espectáculo, para uma audiência de mais de um milhão de pessoas (1.178.847). Não são números insignificantes: são números que, além de sustentarem a criação, a produção, a valorização e o consumo da música portuguesa, fazem mexer com as cidades em vários – e positivos – aspectos. “É o restaurante aonde o público vai jantar antes do concerto, é o hotel que alberga os artistas, é a própria cidade que se altera se não houver estas actividades”, resume Daniel Pires, director do Maus Hábitos e co-criador da Circuito, juntamente com Gonçalo Riscado, do Musicbox.
Como nasceu a Circuito e porquê?
Já existia uma vontade minha e do Gonçalo [Riscado] em fazer isto. Nós próprios juntámo-nos e fizemos uma candidatura, em 2019, ao Creative Europe, de modo a conseguir financiamento para lançar as primeiras pedras do que viria a ser o Circuito, a primeira associação portuguesa de salas de música ao vivo. Depois entrou a pandemia e isto tornou-se ainda mais numa prioridade. Avançamos para a execução da associação e para os contactos com as outras casas, que eu já conhecia pelo facto de ter feito o Circuito Supernova durante três anos [ciclo de concertos descentralizado e com bandas de música portuguesa]. Fiz um zooming out do Maus Hábitos e fui ao encontro destas pequenas salas. Palmilhei o país de cima a baixo e fiquei com uma consciência muito clara dos problemas que existiam, muitos deles comuns a todas as salas de música ao vivo.
Quais são?
Primeiro, é a falta de rede e de apoios, como se vê pelas casas que já fecharam neste período pandémico. Depois, há os problemas de comunicação entre todos nós: uma falta de união, de falar a uma única voz, bem como a falta de representatividade destas pessoas. Há problemas que são transversais, quer estejamos no Porto ou em Faro, porque estamos a trabalhar com a mesma matéria-prima: com músicos, agentes, promotores; com tournées, com música. Muitas destas casas trabalham com as autarquias das respectivas cidades, que lhes vão pedindo serviços ligados à música, sobretudo, mas também em outras áreas no caso de casas que são mais multidisciplinares, como o Maus Hábitos, o Carmo’81, em Viseu, ou a Sociedade Harmonia Eborense, em Évora. A mensagem que queremos passar é que cada uma das pessoas que está alocada a estas casas é insubstituível porque é um agente cultural activo daquela sala, daquela rua, daquela cidade. São pessoas responsáveis por muitas bandas terem chegado aonde chegaram e por garantirem que há produção musical e cultural numa determinada região.
O objectivo é também mostrar que uma sala de música ao vivo faz mover todo um ecossistema, certo? Restaurantes, bares, hotéis, transportes...
Com certeza. As externalidades de uma sala destas são gigantescas. É o restaurante aonde o público vai jantar antes do concerto, é o hotel que alberga os artistas, é a própria cidade que se altera se não houver estas actividades: as ruas estão mais seguras com a existência destas salas, por exemplo, porque há gente a circular. Se estas salas desaparecerem todo este ecossistema vai ficar muito abalado e a recuperação será muito lenta… Na verdade, já vai ser.
Quais são as salas em risco iminente de encerrar?
Muitas já fecharam, a questão é se voltam a abrir quando isto passar. Começa-se a acumular muitas dívidas. Os custos fixos continuam a existir. Ainda não sabemos se vai haver apoios para algumas coisas, como as rendas. Em Lisboa, a Câmara deu um apoio para estas casas até Março. No Porto, fizemos pressão para que a autarquia lançasse o seu apoio e ainda não tivemos resposta. Se o Porto não tem, o que será das casas noutras cidades mais pequenas.
Apesar de tudo, consideras que a criação da associação e o debate público que têm estimulado produziu efeitos positivos?
Sim. Chamou a atenção da sociedade civil para a importância deste circuito, abriu a porta à comunicação com os nossos governantes e sinto que estas medidas que saíram agora também beneficiaram da nossa pressão junto do Governo. Houve a repescagem de projectos de candidaturas à DGArtes que não tinham sido aceites e que têm a música como foco central, por exemplo.
Neste momento, que medidas são mais urgentes?
Precisamos de dinheiro a fundo perdido para compensar as perdas que tivemos e as que vamos ter. Nós achamos que a partir de Setembro poderemos estar a fazer alguma coisa nestas salas, mas não sabemos. Temos de ver como vai correr o plano de vacinação e a agilidade do Governo relativamente a isso. De resto, nós fizemos um inquérito entre as salas que pertencem à associação para perceber quais os custos que elas têm e o que conseguem e não conseguem colmatar. Dados que já apresentámos ao Governo e que foram muito importantes de reunir, pois não havia uma radiografia do que é o nosso ecossistema. Entretanto, há mais salas que se querem juntar – estamos a afinar os critérios para que mais se possam juntar. Os principais requisitos é que tenham programação própria, que façam um determinado número de concertos por ano e que comuniquem as suas actividades. Ou seja, têm de ser produtores culturais. Julgo que a mudança de paradigma passa por nós fazermos ver às pessoas que nós somos trabalhadores da cultura e não empresários da noite. Temos de fazer essa distinção. São as chamadas grassroots music venues e são elas que importa, para a nossa associação, defender.
Acreditam que o circuito de música ao vivo vai sofrer um retrocesso?
Eu sou um optimista, mas acho que neste caso a realidade sobrepõe-se. Se fores ao OLX e procurares por instrumentos musicais, nunca houve tanta coisa. Os músicos já estão a vender os seus objectos de criação musical porque têm de pagar as contas e têm de se virar para outra coisa qualquer. Quando nós voltarmos a precisar deles, vamos andar como andámos há 15 anos: para fazer um concerto, temos de ir pedir uma bateria emprestada, ou alugar um amplificador a uma empresa... Até para quem vai continuar a fazer programação as coisas vão complicar-se.
E notícias positivas, há?
Posso adiantar que a Saco Azul [associação cultural com sede no Maus Hábitos] vai avançar com o projecto A Minha Cidade, A Tua Cidade, em parceria com Braga, Peso da Régua e Matosinhos. Em Peso da Régua é o Clube de Vila Real que está responsável pela programação e em Braga é o colectivo Cosmic Burger. Ou seja, é uma programação em rede que vai convocar artistas da região Norte. Vai ser em Abril, Maio e Junho e vai privilegiar concertos ao ar livre. Além disso, o Maus Hábitos vai expandir-se para Vila Real, mais exactamente para o café-teatro e galeria do Teatro Municipal de Vila Real. É uma expansão na programação de música que fazemos, mas também na programação de artes visuais, num projecto em parceria com o município de Vila Real. Se tudo correr bem, será para abrir em Abril/ Maio.
Recomendado: Na hora mais negra da cultura, “a maioria não tem margem de manobra”