Dança cigana nos jardins do Alcázar
“Dança cigana nos jardins do Alcázar", por Alfred Dehondencq, 1851

Sete visões orquestrais de Espanha por compositores estrangeiros

A apresentação do Boléro de Ravel na Gulbenkian serve para que nos perguntemos: a que soa Espanha vista de fora?

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Na segunda metade do século XIX, muitos compositores – sobretudo russos e franceses – descobriram a música popular espanhola e ficaram fascinados com os seus ritmos enérgicos e o seu forte colorido. A “febre espanhola” atingiu o pico na viragem dos séculos XIX/XX e “infectou” compositores como Claude Debussy, Maurice Ravel, Nikolay Rimsky-Korsakov e Edouard Lalo. O facto de alguns deles nunca terem estado em Espanha e de terem um conhecimento superficial das tradições musicais ibéricas não diminui a validade das suas obras “espanholas”. Quiçá espicaçados por esta “ingerência estrangeira”, no início do século XX, emergiram alguns compositores espanhóis que assumiram a missão de defender as cores nacionais. 

O Boléro em Lisboa

Fundação Gulbenkian. qui 24 21.00 e sex 25 de Outubro 19.00. 14-28€.

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Sete visões orquestrais de Espanha por compositores estrangeiros

Abertura Espanhola n.º 2, de Glinka

Ano: 1851
Nacionalidade do compositor: Russa

Pode parecer paradoxal que Mikhail Glinka (1804-1857), o “pai” da escola nacional russa, tenha composto várias obras de inspiração espanhola, mas, na verdade, Glinka teve uma experiência de vida muito cosmopolita, que começou, em 1830, com uma longa estadia em Itália (por razões de saúde) e demoradas visitas à Alemanha, Áustria e Suíça no caminho de ida e regresso, só regressando à Rússia em 1834, quando teve notícia da morte do pai. Após a fria recepção dispensada na Rússia à sua ópera Ruslan e Lyudmila (1842), fez longas viagens por França e Espanha – onde viveu entre 1845 e 1847 e se apaixonou pelo folclore local – e apenas regressou intermitentemente ao seu país natal, acabando por falecer em Berlim.

A experiência espanhola inspirou-lhe quatro obras orquestrais: Recuerdos de Castilla (1848), duas Aberturas Espanholas, a n.º1 (1845) com o título Capriccio Brillante sobre a Jota Aragonesa, a n.º 2 (1851) com o título Recordação de uma Noite de Verão em Madrid, e a Polonaise sobre um Bolero Espanhol (1855).

[Pela Orquestra Sinfónica da URSS, com direcção de Evgeny Svetlanov, num registo lançado em 1969]

Symphonie Espagnole op.21. de Lalo

Ano: 1874
Nacionalidade do compositor: Francesa

Apesar do título, a obra fica a meio caminho entre a sinfonia e o concerto. Foi composta para o célebre violinista espanhol Pablo de Sarasate, que já estreara, com grande sucesso, o Concerto para violino do compositor em 1873. Foi também ele a estrear a Symphonie Espagnole, em Paris, em 1875. A obra emprega ritmos como a habanera, mas a sua “espanholidade” é de cartão postal e o seu brilho é superficial, o que não a impede de ser, por larga margem, a mais conhecida obra de Lalo.

[I andamento (Allegro non troppo), por Anne Akiko Meyers e NHK Symphony, com direcção de Marek Janowski, ao vivo em Tóquio]

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Capriccio Espagnol op.34, de Rimsky-Korsakov

Ano: 1887
Nacionalidade do compositor: Russa

Nikolay Rimsky-Korsakov (1844-1908) nunca andou pelos lados da Península Ibérica e a “espanholidade” do Capriccio Espagnol (o título original é assim mesmo, misturando italiano e francês) foi adquirida em segunda mão, através da recolha Ecos de España: Colección de Cantos y Bailes Populares (1874), de José Inzenga. Rimsky-Korsakov compôs a obra como escape momentâneo para o penoso labor de orquestração da ópera Príncipe Igor, de Borodin, que este deixara inacabada ao falecer. Os ritmos vivos do folclore espanhol anima os cinco andamentos desta suíte orquestral, que têm títulos como “Alborada”, “Scena e Canto Gitano” e “Fandango Asturiano”. A obra foi concebida inicialmente para violino e orquestra, mas a componente orquestral acabou por prevalecer e o papel solista do violino ficou muito reduzido. Curiosamente, o Capriccio Espagnol foi escolhido para ser tocado nos Concertos Russos que tiveram lugar na Exposição Universal de Paris, em 1889 (um equivalente seria fazer representar no certame a culinária russa por uma paella).

[IV andamento (Scena e Canto Gitano), por John Corigliano Sr. (violino) e Filarmónica de Nova Iorque, com direcção de Leonard Bernstein (Sony Classical)]

España, de Chabrier

Ano: 1883
Nacionalidade do compositor: Francesa

Já Emmanuel Chabrier (1841-1894) pode reclamar legitimidade para compor a Rapsódia para orquestra España no facto de, em 1882, ter passado quatro meses no país de Cervantes. As cartas que escreveu enquanto por lá andou dão conta dos seu entusiasmo com a música popular, que canalizou para a composição de España mal regressou a França – a peça começou por ser destinada a dueto de piano e por intitular-se Jota (o nome de uma dança com forte expressão em várias regiões de Espanha), mas acabou por converter-se na primeira composição orquestral de Chabrier – e também num sucesso estrondoso, quer entre o público quer entre os seus colegas. O espanhol Manuel de Falla foi ao ponto de declarar que “Nenhum espanhol soube transmitir com génio e veracidade comparáveis a variedade da jota”.

[Pela Orquestra Sinfónica da BBC, com direcção de Leonard Slatkin, ao vivo no Royal Albert Hall, 2002]

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Iberia, de Debussy

Ano: 1908
Nacionalidade do compositor: Francesa

Embora nunca tenha visitado o país, Claude Debussy (1862-1918) colheu em Espanha inspiração para algumas das suas obras mais notáveis – nomeadamente nas peças para piano La Soirée dans Grenade e La Puerta del Vino. Iberia é o 2.º painel (mas o 1.º a ter sido terminado) do tríptico orquestral Images, composto entre 1905 e 1912. Divide-se, por sua vez, em três partes: “Par les Rues et les Chemins”, “Les Parfums de la Nuit” e “Le Matin d’un Jour de Fête”. Apesar de recorrer a castanholas e pandeireta e a ritmos afins da sevillana e da habanera, Debussy afasta-se do “espanholismo” estridente e de cores garridas dos seus antecessores e aposta no mistério e na subtileza, sobretudo na opulência nocturna do II andamento.

[II andamento (Les Parfums de la Nuit), pela Orquestra Sinfónica de Montreal, com direcção de Charles Dutoit (Decca)]

Rapsodie Espagnole, de Ravel

Ano: 1908
Nacionalidade do compositor: Francesa

Maurice Ravel (1875-1937) partilha com Debussy o pioneirismo na estética impressionista, o fascínio por Espanha e o facto de não ter posto os pés no país. No caso de Ravel é ainda mais incompreensível que nunca tenha sentido a tentação de atravessar os Pirenéus, pois nasceu em Ciboure, no País Basco francês, de pai francês e mãe basca e de, a partir dos 25 anos, ter passado regularmente férias em Saint-Jean-de-Luz, a escassos quilómetros da fronteira espanhola. A sua paixão por Espanha ficou expressa na ópera L’Heure Espagnole, nas peças para piano solo (depois orquestradas) Alborada del Gracioso e Pavane pour une Infante Défunte e nas peças para orquestra Rapsodie Espagnole e no célebre Boléro.

A Rapsodie Espagnole abre mergulhada em brumas e sombras – “Prélude à la Nuit” – ganha luz, colorido e agitação em dois andamentos inspirados em ritmos de dança – “Malagueña” e “Habanera” – e culmina na viva e rodopiante “Feria”.

[Pela Orquestra Sinfónica de Montreal, com direcção de Charles Dutoit, ao vivo em Tóquio, 1995]

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Boléro, de Ravel

Ano: 1928
Nacionalidade do compositor: Francesa

A encomenda feita a Ravel, em 1927, pela bailarina russa Ida Rubinstein consistia na orquestração de algumas peças da suíte para piano Iberia, de Albéniz, mas, ao descobrir que outro compositor já levara a cabo tal tarefa, decidiu compor uma obra de raiz, inspirada nas usas duas paixões: Espanha e dança. Graças à sua estrutura elementar e ao ritmo obsessivo, que prefigura a música minimal-repetitiva, o Boléro transformou-se rapidamente num sucesso à escala global, para pasmo do compositor, que a concebera como um exercício e que vaticinara: “eis uma peça que nunca fará parte dos programas dos concertos de domingo”.

[Pela Orquestra Sinfónica de Londres, com direcção de Valery Gergiev]

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