Márcia tem aquele talento – mais raro do que se supõe – de partir da sua intimidade para criar objectos de valor universal. E ao quarto álbum, a escritora de canções expõe-se mais do que o costume.
Os Xutos & Pontapés de 2019 não são a banda que muita gente conheceu durante quase toda a vida. Zé Pedro, guitarrista e figura icónica do grupo e do rock português, morreu em Novembro de 2017 e sente-se a sua falta. O resto da banda sente a sua falta. Sempre que o seu nome vem à baila (e é impossível evitá-lo) a tensão aumenta na sala, a conversa ganha outro peso, as palavras parecem custar mais a sair da boca. Mas a vida continua. Há 40 anos para celebrar e um novo disco, o último em que Zé Pedro tocou, para apresentar. A digressão arranca a 25 de Janeiro, o mesmo dia em que Duro chega às lojas e à internet, num Lisboa Ao Vivo esgotado há semanas.
Os Xutos & Pontapés estão a tocar juntos há 40 anos. É a vossa relação mais longa?
Tim: É capaz de ser a minha relação mais longa, talvez com uns meses de diferença. Porque eu conheci a minha mulher em 79 e comecei a ensaiar com os Xutos no fim de 78.
Qual é o segredo para manter o entusiasmo ao longo de quatro décadas?
João Cabeleira: Se houvesse segredo para isso toda a gente o fazia, não é?
Gui: Há um segredo, tu é que não sabes qual é.
JC: É um conjunto de factores, sei lá. Teimosia. Palermice. Falta de horizontes. E é preciso um bocadinho de sorte para se juntarem as pessoas certas para fazer o projecto certo. Neste caso, acho que foi isso que aconteceu.
Mas ao longo destes 40 anos já houve alturas em que pensaram em acabar.
T: Nunca pensámos em acabar.
Nos anos 90 a coisa andou tremida.
T: Mas não pensámos em acabar. Depois dessa interrupção de que falas não sabíamos bem se tínhamos acabado ou se não tínhamos. É diferente. Foram seis meses de interregno e depois voltou tudo a correr como era normal. Claro que foi um abanão muito grande, porque foi uma tournée que foi interrompida e tudo, e realmente aí pode ter aparecido a hipótese de acabarmos por falta de actividade...
JC: Pois.
Porque é que tiveram de parar nessa altura?
T: Por questões burocráticas. Tivemos problemas com o manager da altura, as coisas não batiam certo e por aí fora. Depois tivemos problemas também com o desenvolvimento da tournée, com os equipamentos e mais uma série de coisas que não estavam a correr bem. E o Zé Pedro pura e simplesmente sugeriu que não se podia continuar assim, que mais valia era parar e pronto. Foi uma decisão muito bruta, mas foi o que aconteceu. Depois voltámos.
E quando o Zé Pedro morre, em 2017, não colocaram a opção de acabarem com a banda?
T: Podíamos perfeitamente ter parado a banda ali, mas não era essa a nossa vontade. Nem a vontade do Zé Pedro. Nem a vontade do público.
G: Já tínhamos feito três concertos sem ele no estrangeiro e ele estava sempre demasiado preocupado. Com a nossa paragem, com estar a puxar isto para trás...
T: Ele tinha a preocupação de não nos querer prejudicar de maneira nenhuma, não é?
JC: E tivemos um feedback inacreditável. As pessoas que encontrava na rua ou no supermercado diziam-me que não podíamos acabar, que tínhamos de continuar, de seguir em frente.
Que lugar é que vocês acham que ocupam na história da música moderna em Portugal?
T: Sei lá. Somos um bom exemplo do que se passou na música eléctrica moderna em Portugal. Assim como os Sheiks ou como não sei quantos que vieram depois de nós.
Sendo que tiveram e têm uma longevidade que pouca gente teve.
G: Os GNR também estão quase lá.
T: E os UHF.
G: Os UHF tenho impressão que são da mesma idade.
T: Têm mais um ano, até. Mas o que é que queres que eu te diga? Acho que pertencemos a esse núcleo de pessoas, de artistas, que tentaram fazer alguma coisa sem meios nenhuns e sem saber muito e mesmo assim conseguiram montar um esquema que se reproduziu. Que floresceu e abriu caminho para uma série de coisas.
Então e se não falarmos na história, se falarmos no presente. Qual é o lugar dos Xutos no meio da música em Portugal?
T: Somos uma das boas bandas de rock que nós temos. Não há muito mais a dizer.
O que é que vão fazer para a assinalar os 40 anos?
T: Vamos fazer concertos.
Mas não vão fazer nada mais mediático? Por altura dos 30 anos houve aquele grande concerto no Estádio do Restelo. Em 99, houve o XX Anos XX Bandas...
T: Vamos tentar tocar. Tentar fazer 40 datas.
Kalú: Tentar tocar é fixe [risos].
T: Epá, vamos começar agora com estas salas pequenas e depois logo vemos até onde é que vamos. Se tocamos numa sala muito grande. Para experimentar esses ambientes todos.
Vamos lá falar do novo disco. Este chama-se Duro porque o anterior era o Puro?
JC: Vem na sequência do anterior, sim. É uma ideia que já vinha dessa altura, mais ou menos, e que se concretizou: Puro e Duro. Puro branco e duro preto. Não sei se há mais alguma coisa a acrescentar.
G: Este disco por acaso até foi bastante duro de fazer.
T: Pois. Já para não falar disso. Mas vinha na sequência do outro disco, mesmo.
K: Há uma linha condutora.
O Zé Pedro ainda aparece nos créditos do disco e sei que ele tocou nalgumas faixas. Ele fez o quê exactamente?
G: Tocou em quatro faixas.
K: Aparece em quatro faixas, mas na verdade ainda tocou mais uma ou outra coisa, só que não chegou a acabar.
T: Eram cinco participações, mas uma era muito de ensaio.
K: Estava muito incompleta.
T: E de resto ele fez o que sempre fez: chegar aqui, pegar na guitarra e fazer a parte dele, gravar a parte dele, e até o fez bastante bem. Com uma grande certeza e energia. Depois houve mais quatro músicas que vinham no seguimento disso, mas que ele já não tocou.
Durante quanto tempo é que estiveram a gravar?
T: Isto foi interrompido, porque houve uma tournée pelo meio. Era um trabalho que tinha o seu ritmo, mas demorou para aí dois anos.
K: Talvez até mais.
G: Começámos no final de 2016. O “Alepo” é de 2017.
K: Dois anos e pouco.
Sentem que essa canção, a “Alepo”, tem a mesma força hoje que tinha quando a lançaram em 2017?
T: Acho que até tem mais. Porque as tropas agora não estão naquela cidade, mas estão noutra ao lado. E a história repete-se. Aliás, agora até a tocamos com mais convicção. Quando a estreámos, as pessoas não estavam muito viradas para ouvir aquelas coisas, e nós também não estávamos completamente seguros a tocar aquilo. Agora é diferente.
É interessante que fales do que o público quer ou não ouvir de vocês, sobretudo se pensarmos que os Xutos sempre foram uma banda com letras interventivas, mas ao mesmo tempo relativamente apolítica. Aliás, apartidária.
T: Nós temos todos as nossas ideias. E até já fizemos coisas políticas, já apoiámos presidentes da República e assim. Tivemos alguns contactos para comícios aqui e ali, mas posições partidárias nunca tomámos.
G: Mas não há aqui ninguém que tenha uma simpatia pela direita.
O Kalú está a discordar.
K: Não. Nem pela direita nem pela esquerda.
T: Mas vamos voltar à “Alepo”. O assunto é incómodo. Nós estarmos a dizer ao público: “Já te esqueceste outra vez, mas não te esqueças, olha que isto está a acontecer”. E as pessoas não gostam disso. Ninguém gosta.
E poucas bandas em Portugal têm um público tão abrangente como vocês.
T: É um problema.
Tanto têm fãs de extrema-direita como de extrema-esquerda e tudo o que está pelo meio.
K: E todos cantam “A Casinha”.
E há gente de várias gerações, desde malta nova a pessoas de 60 anos.
K: Malta da nossa idade.
T: Acho que até há pessoas mais velhas que nós que aproveitam ser os Xutos para irem ao concerto [risos]. Às vezes vão com os filhos, que depois levam os netos, mas isso é que é engraçado.
Sentem que o facto de terem um espectro de ouvintes tão vasto, politicamente e não só, vos impede de tomarem certas posições? Lá está, o Gui estava a dizer que ninguém tinha simpatias de direita e o Kalú encolheu logo os ombros.
T: Não é impedir. Não temos é vontade de o fazer.
G: Pois.
T: O facto de o público ser abrangente, muitas vezes pode ser uma razão de preocupação, ou pelo menos de alguma atenção ao que é que se está a fazer e o que é que se está a dizer. E é preciso realmente ter atenção, porque depois as canções vão ser ouvidas por essas pessoas todas e tem de se ter isso em conta.
Há uns quantos convidados no disco. O Carlão, a Capicua, o Jorge Palma... Como é que eles aparecem aqui?
T: O Carlão foi pedido pelo realizador do Linhas de Sangue, porque faz parte da banda sonora. E o Palma e a Capicua aparecem por necessidade. Porque o tema estava imaginado para ser mais ou menos como uma conversa em que cada um conta uma história e tal. Originalmente até ia haver mais dois convidados. Por que é que isso entretanto mudou? T: Porque o Zé Pedro morreu.
A morte do Zé Pedro afectou muito aquilo que estamos a ouvir agora, em relação ao que era para ser o disco?
T: Claro que sim. Depois de uma coisa destas, a atitude da banda perante o mundo é um bocadinho diferente. Porque uma coisa é estarmos os cinco aqui a fazer o trabalho, a olhar para a frente, e outra coisa é estarmos os quatro a fazer o trabalho a olhar para a frente e para trás. Não é bem a mesma coisa. E houve uma série de coisas que não fizemos mais por causa disso, porque ainda estamos a resolver uma série de coisas dentro da banda e dentro de cada um de nós.
Mesmo assim agora já não estão como estavam quando ele morreu, suponho.
T: É um processo.
Já deram uma série de concertos sem o Zé Pedro. O que tem sido o mais difícil desse processo?
T: O mais difícil foi quando ele ainda estava vivo, porque nós tivemos de montar isto tudo ainda com ele em vida. Houve concertos em que ele não podia tocar. E isso foi mais complicado. Era uma espécie de uma bola de cristal.
K: 2017 é que foi duro.
T: Para ser alguma coisa dura foi o 17, não foi o 18.
Porque aí as pessoas acarinharam-nos muito. Imaginam-se a fazer um disco de raiz sem o Zé Pedro?
T: Sim. Não sei se vamos fazer, se não. Mas não é por ele não estar que não vai haver disco.
Então porque é que dizes que não sabes se vão fazer se não?
T: Porque sei lá eu.
K: Um gajo hoje está aqui, amanhã não sabemos [risos].
T: Hoje há conquilhas, amanhã não sabemos. É mesmo por isso, pá.
K: O trabalho musical é muito partilhado. O Zé era uma figura muito importante, mas temos as nossas ideias e a coisa vai andando. Agora o problema é se a malta ainda cá está.
T: Pois. E se tem vontade.
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