Miguel Esteves Cardoso, cronista
Antes do Manel Reis não havia nada. Não havia onde passar as noites, não havia Lisboa, não havia noite. O que havia eram sítios horríveis onde as pessoas iam para se embebedar, era horrível. Não havia um restaurante bom e o Manel fez o Pap’Açorda. A loja dele da Atalaia tinha móveis bonitos dos anos 30/40/50. Iam para o lixo, coisas maravilhosas, que ele recuperava. Ele ia buscar peças bonitas e depois expunha-as na loja para as pessoas verem a beleza das peças e isso era mais ou menos o que ele fazia na vida – por exemplo com edifícios que estavam vazios ou que eram desprezados, objectos e pessoas (sim, pessoas). Mas não era como agora que se recupera e depois nada se faz. Com ele, as coisas estavam vivas. Ele mexia a loja, o restaurante. O Pap’Açorda é importantíssimo, para já porque é um excelente restaurante. O Manuel Reis tinha a paixão da grande culinária. Ele, que viajava muito – era comissário de bordo –, não percebia porque é que em Lisboa não havia um bom restaurante. Mas um bom restaurante, bonito. Havia bons restaurantes, onde se comia bem, mas não havia um bonito e lisboeta. Antes do Manel Reis não havia isto: bonito, lisboeta e bom. O Pap’Açorda é um óptimo restaurante, de 0 a 20 é 20. Os empregados eram bonitos e [por isso] as pessoas que lá iam punham-se bonitas. Quando um sítio é muito bonito e bom e não sei quantas, as pessoas põem-se bonitas e o Manel sempre funcionou para os outros. As pessoas começaram-se a vestir bem – e isto é mesmo verdade – para ir a um sítio bonito.
Para ser muito claro, as pessoas de bom gosto não tinham um sítio de bom gosto para ir. Não havia um. Os bares eram todos como o Pavilhão Chinês ou o Procópio, eram sítios onde só se falava de política, horríveis. E no Frágil, aquilo estava dividido em dois, ele fez um sítio onde as pessoas que nunca tínhamos conhecido se juntavam em tertúlias. Podíamos ficar três ou quatro horas a falar sobre uma cor ou sobre filosofia. Ele criou um sítio onde se podia falar, onde se podia estar. Era muito mais do que sair à noite.
O Frágil tem também muito a ver com o ser gay porque nos anos 1980 ser gay era considerada uma excentricidade. Havia sítios gay, como o Trumps, mas não havia um sítio para as pessoas gay estarem com pessoas sem ser gay. E para as pessoas não gay era muito bom falar com pessoas gay. O Frágil era um espaço de liberdade. [Até aí] não havia um sítio para toda a gente. E isso era uma grande novidade em Lisboa, isto foi em 1982, Lisboa era muito atrasada. As pessoas que abriram o Frágil levavam com baldes de água em cima, foram muito maltratados. E o Frágil era uma ilha, era preciso correr o Bairro Alto para chegar àquela porta. E depois estava sempre a mudar. As pessoas às vezes diziam-lhe: não mudes, não mudes. Mas ele estava sempre a mudar tudo. Convidava um artista e toda a gente pedia de joelhos para que não mudasse – e às vezes ficava horrível. Mas ele percebia que as pessoas se aborrecem.
A música era a melhor – ele arranjava música que não se ouvia em lado nenhum, não havia Internet, não havia nada. A música era muito boa. As bebidas eram muito boas, vinham com muito gelo, não era nada daquela coisa de discoteca. Entretanto regrediu imenso. O gelo era bom. Os empregados estavam muito bem vestidos. Era caríssimo, mas claro que tinha de ser caro: o serviço era muito muito bom.
Outra coisa que o Manel fez – com o Zé Miranda, que já morreu, e o Fernando Fernandes (um trio fabuloso) – foi trazer para empregados pessoas que eram exactamente iguais aos clientes. Não havia qualquer distinção. Aliás, os empregados eram ainda mais bem vestidos do que nós e mais bonitos ainda. Ele foi importante mesmo de muitas maneiras. Os portugueses não estavam acostumados a lidar com os empregados de cima para baixo e ali no Pap'açorda ou no Lux ou no Frágil não havia aquela coisa de cliente e empregado, havia uma igualdade e isso também era revolucionário.
Depois havia pessoas que estavam sempre a dançar e pessoas que nunca iam dançar e havia pessoas como o Manel Reis que tinha as duas coisas: ele gostava muito de dançar, mas também gostava de falar. Estava sempre lá caído, passava lá a vida. Ele fez o paraíso: tinha a loja entre o Pap’açorda e o Frágil; fez um sítio onde ia almoçar e jantar e fez um sítio onde passava a noite. A obra do Manel Reis acaba por ser uma obra-prima do comodismo.
Não era um pioneiro. Ninguém seguiu os seus passos. Infelizmente é insubstituível. Nunca ninguém conseguiu fazer como o Manel Reis, até porque é preciso ter a generosidade dele, de estar sempre a convidar pessoas, a fazer festas gigantes com convites lindos, tudo do melhor. Mesmo agora, para o funeral. Já tem um espaço que reconhece e que gosta. Insistiu que fosse ali no Teatro Thalia. Até morto descobriu um edifício bonito e moderno que quer promover.
Ele fez coisas muito boas, era muito inteligente. Há muita gente a dizer que isto devia ser assim ou assado, todos somos bons nisso, e ele caladinho fazia melhor que todos. As pessoas vinham de fora ao Frágil, mas muito agradecidos por ali entrar. Houve dois ou três anos que aquilo era o melhor sítio do mundo. As pessoas em Londres diziam que estavam atrasadas — e estavam.
[Ao seu lado] Andy Warhol era um preguiçoso, com aqueles filmes de oito horas. O Manel Reis fazia de novo de cada vez. Era o contrário de preguiçoso e acreditava muito nos outros. Não dizia às pessoas para fazerem ao seu gosto. Não dizia do género: não achas que essa cor está foleira? Não, ele acreditava, fosse quem fosse, e essa pessoa tinha liberdade absoluta. E na música também não era um chato. Ele apostava nas pessoas e confiava nelas. Criou um mundo para ele e gostava muito dos outros e portanto gostava que esse mundo estivesse cheio de outras pessoas. À maneira do Andy Warhol, todos os dias o Manel tinha lá um fotográfo a tratar de tudo. Todas as noites sem excepção. E eu dizia: “Oh Manel, mas o que é isto?” E ele respondia: “Vai ser importante, tu agora não percebes”. Ele percebeu. Não era um serviço, as fotografias eram tiradas a todas as horas, ficava tudo registado – só assim apanhava as pessoas a falarem, por exemplo. As fotografias mostram realmente como era, é raro. As fotografias normalmente são uma coisa e a vida é outra, mas não ali, naquelas fotografias, que ele escolhia a dedo. Não é por acaso, aquilo é uma espécie de visão dele do que interessa, do que importa.
Eu não sabia que ele estava doente, foi um choque para mim. As pessoas diziam que ele não gostava de fazer publicidade ou de dar entrevistas, mas ele não precisava porque tinha aqueles milhares de pessoas que lhe agradeciam por lhes ter dado uma vida nocturna, uma vida. A solidão horrível que era antes. As pessoas só falavam com pessoas que conheciam, era uma chatice, sempre as mesmas quatro pessoas. No Frágil, uma pessoa começou a falar com toda a gente e a ouvir opiniões estranhíssimas. Pessoas a criticar a nossa maneira de vestir, a olhar para nós, [havia] discussões.
Abriu muitas mentalidades. Por exemplo, as pessoas de Cascais, os meus amigos betinhos, que apontavam o dedo a dizer: está ali um gajo a dar um beijo a outro gajo. É maricas. Isto aconteceu mesmo, várias vezes. E o Manel chegava lá e dizia: olha isto não é assim. Tinha essa paciência e pachorra, mas mandava-os embora, e depois até acabava por se tornar amigo dessas pessoas. Ele alterou a linguagem das pessoas. Eu tenho amigos, exemplos concretos de pessoas, que entraram para lá de olhos super preconceituosos, com complexos e violência verbal e ao fim de um mês ou dois deixaram de dizer aquelas palavras. Tudo porque o Manel admitia-os. Punha-os na rua, mas depois admitia-os novamente e educava-os e eles ficavam diferentes. Isso é que é extraordinário. Isto é uma obra. Ele mudou as atitudes de uma geração inteira.