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O país ainda estava fechado pela ditadura. Mas a cabeça de João Mota já estava aberta. Tinha estado na Pérsia e em França, para trabalhar e aprender com Peter Brook, com Adolfo Gutkin, com o teatro Noh e o Kabuki. Quando regressou a Lisboa, juntou-se a outros como ele: artistas, resistentes. Não correu como esperado, mas o início foi auspicioso. Um ano depois, em Maio de 1972, nasceria A Comuna – Teatro de Pesquisa. O nome, proposto por Mota, foi escolhido pelos ouvintes de um programa da Rádio Renascença. Uma maneira que se arranjou para driblar a censura e fazer uma homenagem à Comuna de Paris e aos ideais da Revolução Francesa, “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”. Estava feito o manifesto. Cinquenta anos depois, o espírito é o mesmo e a missão também. A companhia quer continuar a ser um espaço de criação e experimentação, de encontro e de partilha, de e para a comunidade. Quem o diz é o homem que pôs tudo em movimento: o encenador e director João Mota, de 79 anos, que recebe a Time Out no conhecido “casarão cor-de-rosa” da Praça de Espanha.
“Já é meio dia?”, pergunta, a caminho do Café-Bar. Antes de escolher uma mesa abençoada pelo sol, declama um poema de Camões. Tem muitas histórias para contar e a cabeça cheia de possibilidades. Mais tarde, revela-nos o segredo para tanta frescura: à noite, dedica pelo menos cinco a quinze minutos para reflectir sobre o essencial do dia. “Deixo de lado as coisas más. Aprendo com elas, claro, mas só fico com o positivo. Adormeço sem saber se acordo no dia seguinte e, se acordar, acordo muito bem disposto”, conta, à laia de lição. Acima de tudo, assume-se professor. Foi precisamente com vontade de ensinar que voltou a Portugal na década de 70, depois de ter estado a aprender com o “grande mestre” Peter Brook, no Centro Internacional de Pesquisa Teatral, em Paris. Pronto para revolucionar o ensino e a criação artística, sagrou-se pioneiro na expressão dramática em Portugal. “Estávamos pouco habituados a trabalhar a voz, o corpo, a respiração, a concentração e o silêncio. A ouvir-nos a nós próprios, a olhar para o outro.”
João Mota fala com propriedade. Há quem diga que ele não vive o teatro, é o teatro. Começou a representar ainda criança, primeiro na Emissora Nacional, depois na televisão. Um dia, ouviram-no dizer poesia e convidaram-no para integrar o elenco do Processo de Jesus, de Diego Fabri, com a companhia Amélia Rey Colaço-Robles Monteiro. Com apenas 15 anos, viu-se de repente rodeado por nomes como Ribeirinho, Palmira Bastos, Laura Alves, José de Castro e Canto e Castro. “Estive dez anos no Teatro Nacional [D. Maria II, do qual viria a ser director artístico entre 2011 e 2014], mas éramos mais debitadores do que criadores. Com Peter Brook, aprendi que ‘o actor é o criador onde habita o texto’. Decore esta frase, que é muito importante”, avisa, antes de evocar as “vontades” que o devolveram aos palcos portugueses. Por um lado, querer contribuir para a reforma do ensino artístico, presidida pela então directora dos Serviços de Música da Gulbenkian, Madalena Perdigão, “uma grande impulsionadora do movimento de educação pela arte”. Por outro, romper com tudo o que se fazia.
A revolução começou em 1971, no Conservatório Nacional de Lisboa, como assistente, e n’Os Bonecreiros, como co-fundador e encenador. Esse primeiro colectivo, que se estreou com O Circo Imaginário do Super-Basílio, uma criação para a infância de Béatrice Tanaka, durou pouco tempo, mas foi da sua cisão que nasceu A Comuna, pelas suas mãos e as de Carlos Paulo, Manuela de Freitas, Melim Teixeira e Francisco Pestana. “N’Os Bonecreiros, havia actores que punham o partido à frente do grupo. N’A Comuna não. E, durante o trabalho criativo, ou se é criador ou não se é. Se cada um for portador dessa liberdade e desse prazer de estar com os outros e no Teatro, então é maravilhoso.” Desde 1 de Maio de 1972 que tem sido assim: maravilhoso. Quando subiram ao palco pela primeira vez, já não eram cinco, mas 14 actores. Estrearam a 22 de Outubro, dia de anos de Mota, numa garagem perto do Liceu Camões, na Praça José Fontana. Com Para Onde Is?, a partir de Gil Vicente, esgotaram 150 lugares por noite, durante quase meio ano.
Foi preciso fôlego e força, claro. Antes do 25 de Abril, viram-se a braços com a censura, tendo chegado a fazer alguns ensaios falsos, “uns ballets e assim”. Pelo meio, várias mudanças de espaço. “Só viemos para cá em 1975. Os taxistas não nos queriam trazer até aqui, chamavam-nos comunistas. Na primeira página do jornal O Dia, vinha ‘João Mota criou A Comuna que desfeia a Praça de Espanha’, com fotografia e tudo. Depois, houve partidos a tentar tirar-nos daqui, tínhamos de fazer brigadas para proteger o espaço. Chegaram a difamar-nos para a Câmara [de Lisboa] nos expulsar. Quem nos contou foi a Isabel Nóbrega e a Maria Velho da Costa. Sofremos muito.” Mas insistiram, só foram aonde a consciência lhes ditou. Precursora do teatro-laboratório em Portugal, A Comuna formou e revelou largas dezenas de talentos, levou a palco perto de 200 espectáculos, criou a experiência inovadora do Café-Teatro, percorreu o país de lés-a-lés, tornou-se uma das estruturas mais internacionais do teatro português e, mais importante, “a pesquisa é contínua”.
Para assinalar o cinquentenário, está a ser feito um documentário, realizado por António Cunha, que deverá ser apresentado a 31 de Maio, no Teatro Nacional D. Maria II, com exibição também n’A Comuna e na RTP2. Antes, levam à cena Fausto, a obra-prima de Goethe, mas na versão de Nerval, a partir da tradução para o português de Luiza Neto Jorge. “É de uma actualidade enorme. Tem tudo o que é essencial”, assegura o encenador, que nos desafia a reflectir sobre o mundo – os poderes, as desigualdades, os desejos, os horrores. Em cena até 19 de Junho, a peça é feita sem cenários, palco ou plateia e com lugar para 50 espectadores, que terão de ficar em pé e movimentar-se durante perto de 1h50. “Já faço Fausto para aí há dez anos. Dava aulas a crianças e fazia o Fausto com elas, dizia o texto por alto e elas faziam. Uma vez um professor veio dizer-nos para não fazer a cena em que se mata a criança e veio o director da escola, uma escola espanhola, nunca mais me esqueço, e disse ‘Não, não. Faça a cena se faz favor’.”
Que venham mais 50
Este ano, a Câmara de Lisboa entregou, por iniciativa de Carlos Moedas e do vereador da Cultura, Diogo Moura, a Medalha de Mérito Cultural à Comuna, que em 1988 já tinha recebido o Estatuto de Utilidade Pública Sem Fins Lucrativos. Agraciado com a comenda da Ordem do Infante D. Henrique em 1992, João Mota também foi condecorado, na passada segunda-feira, pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Este reconhecimento sabe bem, mas não deslumbra. A Comuna já não está no centro da vida cultural e o elenco residente está reduzido a quatro actores: Hugo Franco, Miguel Sermão e os únicos resistentes do grupo original, João Mota e Carlos Paulo. “Estamos a falar de uma companhia que faz 50 anos em Portugal. Não era de nos perguntarem o que é que queremos fazer? Aonde é que queremos ir? De nos dizerem, ‘digam-nos, que nós fazemos acontecer’?”, questiona Hugo Franco, que interpreta o demónio Mefistóles em Fausto, onde contracena com Rogério Vale e Carlos Paulo, ambos no papel de Fausto; Ana Lúcia Palminha, no de Margarida; e outros cinco jovens actores.
Voz de uma outra geração, Hugo Franco, de 47 anos, começou a sua carreira no teatro em 1997. Nessa altura, o então membro dos Mercuriocromos, banda que co-fundou em 1995, foi convidado como autor musical para O Homem Dentro do Armário, uma peça de Miguel Rovisco com encenação de João Mota. “Vim ver um ensaio a convite do Carlos Paulo. O Mota estava sem assistente e eu disse ‘eu faço, eu também sei’. Menti, não sabia. Mas aprendi tudo”, conta, com gratidão. “Ele tem esta inquietação toda, que se apazigua quando vê teatro, e eu também. Adoro ver representar, pensar o espectáculo e no que o público vai sentir, no que gostava que sentisse. Há quem diga ‘estou-me nas tintas para público’. Nós não pensamos assim. Fazemos teatro para as pessoas, para as pôr a pensar e a debater. Tenho pena que a maior parte ache que [o teatro] é só fait-diver, que é menor. Não é. Se todos os artistas do mundo parassem, mesmo todos, do teatro, do cinema, da pintura, todos, talvez percebessem o que seria ficar em casa a olhar para o nada.”
A Comuna – Teatro de Pesquisa, Praça de Espanha (Lisboa). Até 19 Jun, Qua 19.00, Qui-Sáb 21.00 e Dom 16.00. 7,50€-12,50€. Reservas por telefone (217 221 770) e e-mail (reservas@comunateatropesquisa.pt).
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