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“Ia ao Snob, muito frequentado por jornalistas, onde eu costumava comer uns croquetes. Ia ao Procópio e, mais tarde, também ao Pavilhão Chinês”, conta Paulo de Carvalho, intérprete de uma das canções que marcou o 25 de Abril de 1974, “E Depois do Adeus”. Tema que cantou no Festival de Canção e que, nas rádios, acabou por servir de senha para o desenrolar da revolução. “Alimentou-me o ego durante um tempo. Dava a sensação de que tinha participado, quando não fiz nada por isso”, recorda. Paulo de Carvalho é um dos entrevistados no livro 50 Cravos Depois – Guia pela Lisboa de Abril, uma edição de autor da jornalista Sandra Nobre e da fotojornalista Clara Azevedo, que nos transporta para uma Lisboa de há 50 anos, levando-nos de volta para alguns dos espaços que ainda hoje sobrevivem na cidade.
Cada capítulo inclui uma entrevista a uma figura da nossa cultura, nas mais diversas áreas, à qual se segue um périplo por espaços da área em questão. Por exemplo, no caso de Paulo de Carvalho, as páginas que se seguem à entrevista são um verdadeiro guia musical, com espaços que ligam estes 50 anos, como o quiosque da ABEP – Agência de Bilhetes para Espectáculos Públicos, a discoteca/papelaria/livraria Sinfonia, a Academia de Santo Amaro e o Coliseu dos Recreios. Cada uma destas entradas é composta por uma fotografia actual e um pequeno texto que também se socorre de testemunhos, mas directamente ligados a cada um destes espaços. E são outras as áreas culturais esplanadas neste guia, cada uma delas antecedida por testemunhos de Maria Teresa Horta (literatura), Filipe La Féria (espectáculo), Júlio Isidro (rádio e televisão), Maria Antónia Palla (jornalismo), Alfredo Cunha (fotografia), Ana Salazar (moda), João Pardal Monteiro (arquitectura), Graça Viterbo (design de interiores), Pedro Cabrita Reis (arte), Virgílio Nogueiro Gomes (gastronomia) e, por fim, Joel Xavier Salvador, uma excepção neste conjunto, por não se lembrar do dia da revolução, já que nasceu precisamente no dia 25 de Abril de 1974.
A apresentação de 50 Cravos Depois – Guia pela Lisboa de Abril decorreu esta quarta-feira na Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA), um espaço que não guarda boas memórias do Estado Novo, regime que chegou a fechar as portas deste espaço cultural na década de 1950. Sandra Nobre, autora dos textos e entrevistas deste livro, falou um pouco sobre a importância destes testemunhos que recolheu. “Espero que nestas páginas prevaleça a memória de um tempo que quem viveu tantas vezes quer esquecer os episódios que passou. Mas que estes testemunhos, os pequenos episódios do quotidiano que conto, sirvam para as gerações a quem cabe preservar a democracia, não esqueçam que houve um tempo em que não havia liberdade. Em que as mulheres tiveram de facto lutar pelos seus direitos, em que proibir e censurar eram os verbos mais usados e que foi preciso lutar pela liberdade de expressão e pela liberdade de sermos quem queremos ser”. Sobre estes lugares, onde hoje podemos viver em liberdade, Sandra Nobre sublinha que quis falar sobretudo sobre “as mudanças”, ou seja, “aquilo que é o pré e o pós 25 de Abril”. “Mas é de histórias dentro da história que falamos e por isso vamos ouvi-las por quem as viveu”, convidou esta premiada jornalista, também fundadora do Short Stories, um projecto de livros personalizados.
Acontece que as histórias também se contam sem palavras e aí entra o talento da fotojornalista Clara Azevedo. “A ideia de fazer um guia para os 50 anos do 25 de Abril surgiu de uma forma espontânea. Já tinha trabalhado com a Sandra em jornais e revistas e temos algo que nos liga: gostamos de contar histórias. A Sandra conta histórias com palavras, eu conto histórias com imagens. Esta é a história de uma Lisboa que existia em 1974 e continua viva em 2024, 50 anos depois. As fotografias deste livro são na realidade uma recolha documental dos lugares que existem. São fotografia como documento, a fotografia como memória. E são os retratos de diferentes personalidades da nossa vida cultural que adensam as memórias de uma fase tão intensa da nossa história”, revela Clara Azevedo. Durante esta apresentação, aproveitou para destacar o design desta edição, um trabalho assinado por Rogério Cruz d’Oliveira que inclui precisamente 50 cravos. “Podem contar”, desafia a fotógrafa.
Nesta primeira fase, o livro ficará disponível nas 18 bibliotecas municipais de Lisboa, onde poderá ser requisitado de forma gratuita, uma espécie de presente à comunidade tornado possível graças ao patrocínio de uma bebida gaseificada. Que também tem algumas contas por acertar com o Estado Novo, que proibiu a sua venda em Portugal.
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