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Nem à frente, nem atrás do seu tempo, Luiz Pacheco era – e sempre será – um marginal. Igualmente libertino e libertário, não tinha medo de cuspir na mão daqueles que lhe davam de comer. Era um crente na bondade, mas rapidamente se tornava implacável, criticando com dureza sempre que assim achava por bem. Por várias vezes cortou relações com os seus pares e amigos, devido a desavenças intelectuais e pessoais. Homem de muitos saberes, dizia-se “o sacristão do surrealismo”. Frequentou os círculos de café de Cesariny, o Grupo do Café Gelo. Divulgou a sua obra. Não era um realista, nem um surrealista. Era um idealista. Foi-o até ao fim da vida. Polemista por natureza, denunciou a desonestidade intelectual e a censura imposta pelo regime salazarista, mas também fez parte dela. Durante 15 anos, trabalhou como fiscal da Inspecção Geral de Espectáculos. Até se fartar – era demasiado livre.
No São Luiz, vamos ter a oportunidade de conhecer o homem e o mito – e a linha que separa o desejo da realidade. O Libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor é um monólogo desassombrado baseado em passagens do texto com o mesmo nome, publicado em 1970 e que narra “um dia passado numa Braga fantasmática e lúbrica”. Com encenação de António Olaio e interpretação de André Louro, que encarna a figura intransigente de Luiz Pacheco com todas as suas virtudes e defeitos, está em cena a partir desta sexta-feira, 17 de Janeiro, prolongando-se até ao fim-de-semana (dias 18 e 19). Mas não é uma novidade. Há mais de 20 anos que esta peça é ensaiada e adaptada às particularidades do espaço em que é apresentada. No subsolo do São Luiz, o cenário faz-se a meia-luz, com uma estante de madeira ao centro, um candeeiro de mesa e alguns livros mofados. Em baixo, vários tapetes amontoados. A iluminação é quente mas baixa, como se estivéssemos ali, tão perto, no albergue em que Luiz Pacheco se encontrava hospedado antes de partir para a bafienta “cidade dos arcebispos”.
No papel do autor e crítico português, o actor André Louro fala em estilo pachecal de putas, minetes e “pininetes”, da política bracarense (“uma trampa”) e da cabidela, do vinho verde e das minhotas (“uma delícia”). Fala das lolitas que cobiça com “olhar de cio” em logradouros e bancos de rua, dos magalas (soldados de infantaria) que acabam de chegar do Ultramar. Deseja-os a todos: o corpo, a carne, o sexo. O prazer da vida. “O pecado é uma das coisas que compõe a vida”, defende o actor, à Time Out, após um ensaio. “Este é um texto em que estas coisas não acontecem realmente. Tudo o que ele descreve são desejos – acontece tudo na mente dele.”
Apreendido várias vezes pela PIDE, O Libertino foi um escândalo para a época, expondo o racismo de então ao mesmo tempo que abordava a homossexualidade sem tabus. “É uma das características do Luiz Pacheco, ele escreve sobre aquilo que vivenciou”, diz André Louro. “Há criadores onde isso é indissociável. E eu acho que no caso do Pacheco, a obra mistura-se com a pessoa”.
Numa referência ao escritor e aventureiro italiano, o actor compara a figura de Pacheco à de um “Casanova frustrado”. Já António Olaio descreve-o por várias vezes como “um homem livre”. Mas o escritor nascido numa velha casa da Rua da Estefânia, em Lisboa, era dotado acima de tudo de uma enorme inteligência. “O Luiz Pacheco era um lúcido, com todos os problemas que isso traz”, repara Louro.
No ano que se celebra o centésimo aniversário do nascimento de Luiz Pacheco, Louro destaca a “liberdade de pensamento” que permeia a obra e a vida de Pacheco. “No caso dele, há pensamento e há conhecimento – um grande conhecimento”, diz. Obcecado por livros, é a ele que devemos as primeiras edições de Sade em Portugal. Editou e publicou também o que de grande há nas obras de Cesariny, Natália Correia e Herberto Helder, através da editora Contraponto. Era um leitor compulsivo, e um crítico temido. “Lia muito, anotava, tomava notas, rasurava. Dava-se ao trabalho de corrigir os livros dos outros”, relembra o encenador.
Em O Libertino passeia por Braga, a idolátrica, o seu esplendor não houve qualquer intenção de recriar uma época ou um contexto. Tudo o que nos situa visualmente está na diarística de Luiz Pacheco. “A haver uma recriação, será a de um estado total”, defende André Louro. “[O Libertino] é um espectáculo que já tem vários anos, e que vai crescendo, ou envelhecendo, connosco. E obviamente, a nível pessoal, as nossas prioridades, as nossas visões do mundo também vão sendo diferentes, vão sendo aprimoradas, modificadas, e nós conseguimos acompanhar também esse texto e torná-lo vivo – algo que não está ali fechado e encerrado nas suas letras”.
Em suma: “é o homem e a sua memória, as suas referências”, conclui André Louro. Ei-lo então, o génio maldito de Luiz Pacheco, debaixo das tábuas do São Luiz: lúcido, destemido, intemporal.
Teatro Municipal São Luiz (Lisboa). 17-19 Jan. 7€.
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