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Rosa Reis tinha 46 anos e trabalhava como secretária no departamento de Medicina da Lisnave, em Almada, quando soube que Portugal ia assistir à construção de uma das mais importantes obras de engenharia civil das últimas décadas. "Comecei a ver aqueles cilindros grandes, de cimento, no estaleiro e fui perguntar para que eram. Contaram-me que era para construir a ponte. Na altura, eu trabalhava com um médico que tinha um irmão na gestão da obra. Era o engenheiro Vístulo de Abreu. Fui falar com ele, porque queria fotografar, e ele autorizou", conta a fotógrafa, em conversa com a Time Out. Daqui se formou um largo conjunto de fotografias, parte das quais fazem a exposição "Pulsar da construção – Ponte Vasco da Gama", que arranca esta quinta-feira, 7 de Março, na Galeria IMAGO, em São Vicente. Em 17 imagens, vamos da terra plana às cofragens, passando pelos pilares, elevadores de obra e tabuleiros, e também vemos como mais de 3000 homens ergueram a então maior ponte da Europa.
Foi também a construção da Ponte Vasco da Gama (1995-1998) o acontecimento que levou Rosa Reis a apresentar o pedido de reforma antecipada e a sair da Lisnave, onde tinha trabalhado desde sempre, para se dedicar inteiramente à fotografia. "A trocar o certo pelo incerto", diziam-lhe. O trabalho, tal como a obra, durou três anos e ficou guardado até hoje (à excepção de uma pequena mostra que aconteceu num recinto privado). "É a primeira vez que mostro este trabalho ao público. É um dos muitos trabalhos que estão de lado", conta a artista de 75 anos, que começa, agora, a querer dedicar-se ao seu arquivo pessoal, com o objectivo de o organizar, mostrar em exposições e em livros.
Uma mulher nos estaleiros
Mas voltemos a 1995. Nos estaleiros da Lisnave, do Seixal, do Samouco e de Beirolas, na margem Norte, a fotógrafa andou "sempre sozinha, a fazer o que queria", uma mulher num mundo quase exclusivamente de homens (houve apenas quatro mulheres envolvidas na empreitada da Vasco da Gama, segundo Rosa Reis: duas técnicas de segurança, uma engenheira e uma profissional da cozinha), que se interessava por registar a transformação do espaço e a força do trabalho. "Dou-me bem com eles", diz Rosa, que apesar de ter escolhido sempre cenários de maquinaria pesada e betão nunca gostou do risco. "Se queria fotografar, tinha de ser", simplesmente. Mas fazia-o (e continua) com um "olhar feminino", acredita. Que diferença faz isso? "Acho que há uma sensibilidade diferente", analisa a fotógrafa, adiantando que, no seu caso, acrescenta-se uma originalidade, um outro ângulo e associações inesperadas, como se as imagens fixas da matéria nos pudessem fazer pensar para além disso. Ou, pelo menos, é isso que ela tenta.
Sempre a impressionou a transformação total da paisagem e "como homens pequeninos conseguem fazer algo tão gigantesco". "Gosto muito de ver o homem a fazer as coisas, da alteração do espaço", conta Rosa Reis. Com a Vasco da Gama, o contraste elevou-se ao máximo. Erguia-se, nos anos áureos da construção pública, com a Expo 98 como exemplo, a maior ponte da Europa (destronada, em 2018, pela Ponte da Crimeia, que foi entretanto parcialmente destruída), cuja edificação culminou com a mítica feijoada disposta numa mesa de cinco quilómetros, provada por 15 mil pessoas e que entrou para o livro do Guinness, sob a histeria das televisões. Os 12,3 quilómetros de comprimento (11,5 quilómetros em viadutos) envolveram o trabalho de 3300 pessoas, para se criar uma alternativa à muito congestionada Ponte 25 de Abril e ligar a "nova Lisboa" da Expo à margem Sul do Tejo.
Projectos sempre longos
Como em todas as obras públicas, ali, a segurança era máxima, mas, apesar disso, os acidentes não eram uma impossibilidade. Dos episódios que mais marcaram Rosa Reis, a fotógrafa recorda os trabalhadores que morreram num acidente num carro de obra, em 1997. "Conhecia um deles, e aquilo marcou-me muito." Rosa não conheceu todos os operários que estiveram na construção da ponte, mas o tempo que lá passou – manhãs e tardes inteiras, durante três anos, depois ou antes de ir levar e buscar os filhos à escola – foi uma das principais armas de aproximação aos rostos do trabalho. "Nunca fotografo ninguém contra. As pessoas autorizam-me verbalmente ou às vezes basta o olhar. Mas sei que, com o tempo, vou conquistando as pessoas. E acabo por dar fotografias a muitas. É o mínimo que posso fazer", diz a artista. Por outro lado, os seus projectos (à excepção, talvez, dos concertos de jazz que acompanhou nos últimos anos) são quase sempre de longo curso, meses ou anos.
Quando, em 1998, a Ponte Vasco da Gama ficou pronta, Rosa Reis foi à procura de mais para fotografar. E continuou, até hoje. Do portefólio fazem parte imagens de edifícios marcantes como a Fábrica da Pólvora de Vale Milhaços, no Seixal, do desmantelado Bairro 6 de Maio, na Amadora, ou da construção monstruosa da Fundação Champalimaud. "São todos projectos pagos por mim, das deslocações à revelação. Sou completamente independente, nunca recebi um tostão por estas fotografias", conta a autora. É um privilégio poder fazê-lo e Rosa Reis sabe-o. "A fotografia é um prazer", "uma experimentação absoluta". Poder partilhá-la com os outros é a outra face dessa experiência.
Galeria IMAGO (São Vicente). 7-30Mar. Qua-Sáb 14.30-18.30. Entrada gratuita
+ Esta exposição gratuita conta a história de Campo de Ourique