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O velho projecto de fazer uma ligação directa da Linha de Cascais à Linha de Cintura tem os dias contados. Na reunião da Câmara de Lisboa (CML) de 24 de Fevereiro, o presidente Fernando Medina anunciou uma mudança de planos: em vez de ser construída essa ligação directa, o município propõe agora o desnivelamento da Linha de Cascais, em Lisboa, para aproximar a cidade do rio. A principal razão prende-se com a aprovação da expansão da Linha Vermelha do Metropolitano de Lisboa até Alcântara/ Alto de Santo Amaro.
A Linha de Cascais é, e vai continuar a ser, a única ligação ferroviária de passageiros isolada da restante rede. Pelo menos foi o que avançou, então, Fernando Medina. “A Câmara Municipal de Lisboa, de há vários anos a esta parte, foi umas das defensoras do projecto de integração da Linha de Cascais na Linha de Cintura e da unificação do sistema ferroviário nacional”, explicou o autarca, que diz ter sido feito “um trabalho grande de integração” da linha ferroviária de serviço ao Porto de Lisboa na própria Linha de Cintura. “Entretanto o mundo avança e, como acontece relativamente a este projecto, as opiniões vão mudando”, disse Medina, preparando terreno para a nova solução de desnivelamento da Linha de Cascais.
A mudança de opinião resulta, por um lado, da futura Linha Circular do Metro de Lisboa, que “resolve uma parte da questão central da integração da Linha de Cascais na Linha de Cintura, que é permitir uma possibilidade de chegada rápida à parte central” da cidade; por outro, devido à aprovação da expansão da Linha Vermelha para a zona ocidental, com novas estações nas Amoreiras, em Campo de Ourique, na Infante Santo e... em Alcântara. Com a Linha Vermelha até Alcântara, o executivo da Câmara considera que fica respondida uma das principais questões: “o fácil acesso, de modo rápido, de todos os passageiros da Linha de Cascais ao centro da cidade de Lisboa.”
Esta opção vai assim permitir o desnivelamento “parcelar” da Linha de Cascais no município de Lisboa. “O problema urbano é que temos uma cidade que está cortada no acesso ao rio no fundamental da sua frente do Cais do Sodré para poente”, notou Medina, destacando as “insuficientes e deficientes passagens de atravessamento” e as “duas grandes vias rodoviárias, uma de cada lado, com uma grande via de transporte a meio”. “A cidade podia ser outra, com outro rasgo”, disse, adiantando que este projecto “permite toda uma outra reflexão sobre a zona de Belém e sobre metade da frente ribeirinha de Lisboa”, um processo que será brevemente anunciado pela CML.
Continuar a ligar a cidade ao rio
Na zona oriental da cidade a frente ribeirinha da cidade já vai mais adiantada na aproximação ao rio. Em Fevereiro de 2020, nasceu o Parque Ribeirinho Oriente que se inicia junto aos armazéns da Doca do Poço do Bispo e se estende para Norte ao longo de 600 metros, ocupando uma área total de quatro hectares junto ao rio Tejo. Um projecto da CML desenhado pelo ateliê F|C Arquitectura Paisagista, de Filipa Cardoso Menezes e Catarina Assis Pacheco, que terá uma segunda fase em direcção ao Parque das Nações.
Recentemente, o Parque Ribeirinho Oriente foi um dos 11 projectos seleccionados para o 11.º Prémio Internacional da Paisagem Rosa Barba, um dos mais importantes galardões para os arquitectos paisagistas de todo o mundo. Perguntámos por isso a Catarina Assis Pacheco sobre o impacto e as possibilidades que se poderiam abrir com esta solução para a zona ocidental. “Assim de repente, parece-me óbvio que essa solução de enterrar o troço final da Linha de Cascais seria uma enorme mais-valia em termos de ligação das pessoas ao rio. O espaço público da cidade só teria a ganhar”, afirma a arquitecta paisagista. “Além disso, em termos de mobilidade suave (bicicletas, trotinetes e outros), acho que também seria benéfico, já que se poderiam repensar e reperfilar os dois eixos viários paralelos: a Avenida 24 de Julho, e a Av. Brasília e Rua da Cintura do Porto de Lisboa.”
Falámos também com Sofia Santos, especialista em mobilidade e investigadora no ISCTE, que “numa visão mais abrangente” considera a zona de Alcântara “estratégica do ponto de vista de ligação a outros concelhos”. Mas a falta de metro aliada à percepção negativa que alguns grupos da sociedade têm dos autocarros – porque se atrasam, por exemplo, embora a investigadora considere que são um meio de transporte muito mais flexível do que o metro –, acabou por promover o uso do carro naquela parte da cidade. E, tal como Catarina Assis Pacheco, considera “óbvio que a fruição daquele espaço seria muito mais livre e acessível” com o desnivelamento da Linha de Cascais. “Seria uma forma de Lisboa redescobrir aquela zona. Não só Lisboa, mas toda a Área Metropolitana, porque com esta evolução mais recente, de o passe ter passado a ser muito mais barato, de repente tornou-se mais acessível para uma série de gente, que de um dia para o outro pôde passear de Setúbal ao centro de Lisboa, ou a Mafra, pelo mesmo preço. E são passes que já iriam comprar para trabalhar”, lembra Sofia Santos.
A intervenção na linha de comboio teria, no entanto, de ser alargada às outras barreiras em relação ao rio, as vias rodoviárias, nota a especialista. “Há muita gente a usar aquela faixa de Alcântara e Belém. Agora, ir para lá de carro não é acessível a toda a gente, por isso ia ser um grande convite para utilizar os espaços nos tempos de lazer, usando o transporte colectivo e podendo andar a pé. Que é importante para as pessoas mais velhas, pessoas com carrinhos de bebés ou com outro tipo de necessidades de mobilidade”, diz, sublinhando ainda a insegurança que se faz sentir à noite, especialmente para as mulheres, entre os muitos recantos e viadutos da zona.
Para Sofia Santos, um novo projecto deve ter a acessibilidade como palavra-chave e fazer a ligação do que é uma cidade saudável e também sustentável. “Está tudo a pedir-nos isso. Os problemas de saúde, o excesso de emissões de CO2, a nossa vontade, espero eu, pós-Covid de poder sair à rua e andar livremente.” A especialista defende ainda que o projecto deve convidar à fruição do espaço público pelos residentes da cidade, “porque a centralidade turística já existe”. Quanto à ligação por metro e não por comboio, considera fazer mais sentido: “Tradicionalmente não se usa a linha de comboio para tentar que o tecido urbano central fique mais compacto. O comboio serve mais para ligar a periferia ao concelho, permite maiores distâncias, as estações são mais espaçadas umas das outras… Temos de pensar que as estações de comboio, como Benfica, quando foram criadas eram na periferia da cidade.”
Não virar o disco e tocar o mesmo
Mesmo olhando de forma positiva para a eliminação das barreiras ribeirinhas com o desnivelamento da Linha de Cascais, Sofia Santos olha com preocupação para as alterações que isso pode trazer ao tecido social, em particular na zona de Alcântara. Bairro onde decorre a actual edição da Lisbon Week, lembra, que explora, entre outros temas, a história operária e industrial de Alcântara. “Já não existe a Lisboa operária que deu origem a esses bairros, mas existe a Lisboa popular associada a esses bairros. E que não se perca”, apela a investigadora, que não gostaria de ver Alcântara tornar-se numa “Expo, parte 2”.
“O grande receio nestas grandes operações de requalificação é que depois elas originem grandes substituições dos residentes e que o tecido mais popular que ainda existe naquela zona seja expulso. Tem sempre que haver um cuidado, e não são as palavras que vamos pôr nos planos. São as acções concretas da CML para proteger rendas, para criar habitações com renda acessível, para se certificar de uma forma muito concreta que estas operações urbanísticas depois não destroem o tecido social”, alerta. Sofia Santos diz que em relação à Expo 98 não existiu um objectivo de “misturar vários grupos sociais”, embora tenha tido a sua validade ao regenerar um espaço descaracterizado e abandonado, criando uma nova centralidade. “Mas tem de se pensar em mais do que isso. Tem que haver este tipo de medidas associadas, não é só vamos fazer um espaço mais bonito e pronto.”
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