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Em vésperas de apresentar a segunda colecção no Sangue Novo da ModaLisboa, Maria Duque faz um curto e sucinto ponto de situação: um caos. Aos 24 anos, a designer trabalha num pequeno estúdio improvisado em Louriceira, terra onde nasceu, no distrito de Santarém. Em Outubro, mês em que ficou entre os cinco finalistas do concurso dedicado a novos talentos da moda portuguesa, começou a desenvolver o que viria a ser Sagrada Família – uma colecção de oito coordenados, cruzamento de um streetwear contemporâneo, de um catolicismo enraizado e das referências góticas que lhe pairam sobre o guarda-roupa.
Há quatro anos, criou a Molly98. Mais do que uma marca assente no pilar da sustentabilidade – e claramente pensada para viralizar nas redes sociais –, o uso de tecidos esquecidos em stocks e de peças perdidas no tempo (ou nas tendências) é uma parte essencial do trabalho. “Quando estou a trabalhar o conceito, já estou de olho em materiais. Acaba por ser um trabalho simultâneo, até para saber com o que posso contar. O upcycling é isso – não sabes o que vais encontrar. Não é como se pudesse chegar à loja [de tecidos] e comprar”, explica.
Entre os materiais usados na colecção que apresentou no início de Março, o pelo esteve em destaque. “Sabia que não ia ter tanta facilidade em encontrar deadstock ou em armazéns antigos, então tive de comprar casacos em segunda mão, desfazê-los e aproveitar o pelo.” Lojas que acumulam roupa doada são outro dos oásis de Maria e, além dos casacos de pelo, a designer teve ainda de usar saias e casacos em pele sintética para construir novas peças. Desafiante, mas nada que se compare à colecção anterior, feita com recurso a camisolas e cachecóis de clubes de futebol.
“Foi a minha primeira ferramenta de trabalho. Na altura, nem sequer tinha dinheiro para comprar deadstock ou desperdício, simplesmente pegava nas roupas que já não usava. Mas continua a ser uma forma viável de trabalhar”, resume. Maria Duque não se sagrou vencedora do Sangue Novo. Mas o plano para criar uma etiqueta reconhecível à distância está em marcha. Recebe encomendas, pedidos de peças para produções de moda e, mais recentemente, convites para vestir músicos como Rita Vian ou Pedro Mafama.
O novo upcycling
Conscientes da actual emergência climática e da importância de reabilitar a moda através de práticas mais sustentáveis, criativos de todo o mundo têm recorrido ao excedente da indústria (por vezes, das próprias marcas) para introduzir algo novo no mercado. O design entrou em acção e nomes como a designer francesa Marine Serre tornaram-se referências na moda de luxo.
Em Portugal, Joana Duarte, através da marca Béhen, foi a primeira a provar que umas calças feitas a partir de uma colcha ou uma blusa feita com uma toalha de chá eram, afinal, o que de mais sofisticado poderíamos estar a vestir em 2020. Uma lição aprendida por outros jovens criadores, como Maria Clara e Filipe Cerejo, que traçam agora os seus próprios percursos dentro da moda de autor.
Uma preocupação que atravessa gerações. No final do ano, Dino Alves foi outro dos nomes a pegar em peças já existentes, transformando-as em novas propostas de moda. O convite chegou por parte da Mister Man, loja especializada em alfaiataria masculina. Parados nos anos 80 e 90 (e também no início dos 00), blazers e fatos ganharam, nas mãos do criador, um toque de contemporaneidade.
A Sul nada de novo, tudo renovado
Em Janeiro, o projecto criativo de Jéssica António ganhou um novo fôlego. Num concurso de talentos, emitido ao domingo à noite na televisão pública, Carolina Deslandes voltou a chamar a atenção pela escolha do guarda-roupa – um fato de lã bege, assimétrico, com pequenas aplicações de tecido franzido e missangas. Uma jornada de mais de 54 horas de upcycling que valeu à J-Ant os seus (merecidos) minutos de fama.
“Fazia todo o sentido que vestisse algo especial, feito para ela. Pegámos num fato e demos-lhe ali uns ajustes de forma a que fosse único. Foi todo bordado à mão com missangas e usámos elementos feitos a partir de desperdícios da colecção em que estávamos a trabalhar, incluindo cortados do próprio fato”, detalha a designer de 29 anos, radicada em Lagos, no Algarve.
O processo repete-se sempre que uma peça sai do atelier da J-Ant, marca que criou em 2017. O upcycling está na base do pensamento criativo e o gosto por explorar diferentes técnicas e texturas revelou-se fundamental na construção de uma estética sua, mesmo quando ainda era uma aspirante a designer de moda. “Sempre fui apaixonada por tecidos, eram sempre a base dos designs que fazia. A questão da tactilidade, andava sempre a mexer. Então, comecei com algumas experiências, nomeadamente a fazer um tecido novo a partir de restinhos e linhas. Percebi que uma peça básica não fazia sentido nenhum para mim, tinha de modificá-la e adicionar essas manipulações do tecido.”
Ao fim de 13 anos a viver nos Países Baixos, regressou a Portugal em 2019. Pelo meio, estudou design de moda em Utrecht, passou pela Dinamarca e ainda trabalhou em Barcelona com marcas de pronto-a-vestir bem conhecidas por cá. No final, teve a certeza que, o que quer que fizesse na área da moda, teria de ser num ritmo bem mais lento.
“Tinha o sonho de fazer uma colecção, de entrar na ModaLisboa, mas a realidade não foi essa. Em 2020, lembrei-me que tinha fotografias super boas da minha colecção de final de curso e pus algumas peças à venda online. Fiquei surpreendida quando vi que um dos casacos tinha sido vendido por 2.300€.” Foi o empurrão que faltava para registar a marca em Portugal e entrar num programa de aceleração de pequenos negócios.
Hoje, tudo começa nas lojas de segunda mão que tem como parceiras e onde o desperdício têxtil é uma realidade. É de lá que traz fatos completos, gangas, algodões, linhos, toalhas e edredões. “Sempre tons neutros. Manipulo tanto os tecidos, tenho tantos detalhes, que é importante manter uma certa calma, uma certa pureza. Acho que se fossem peças muito coloridas, não faria tanto sentido. E depois, quanto mais natural e menos tingida uma peça é, maior a probabilidade de ser biodegradável.”
O passo seguinte é desconstruir para construir de novo – tirar forros sintéticos, dar novos cortes às peças e passar horas em acabamentos minuciosos. Naperons são bem-vindos, fora as peças em crochet feitas no atelier, mais texturas para juntar à viagem táctil que é cada peça. Prestes a lançar uma nova colecção e a abrir uma loja no centro de Lagos, Jéssica tem vendido sobretudo para a América do Norte e para o Japão. Mas o Verão vai ser passado com os pés bem assentes em Portugal. Depois de Carolina Deslandes, a J-Ant quer vestir outros músicos para a época de festivais.
Artigo originalmente publicado na edição de Primavera da Time Out Lisboa, em Abril de 2023.
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