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A música portuguesa está mais pobre. Morreu Fausto Bordalo Dias

Cantor e compositor de discos fundamentais como ‘Por Este Rio Acima’, ‘Madrugada dos Trapeiros’ ou ‘P'ro Que Der E Vier’ não lançava um álbum novo desde 2011.

Luís Filipe Rodrigues
Editor
Fausto Bordalo Dias
DRFausto Bordalo Dias
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Fausto Bordalo Dias marcou como poucos, e de várias formas, a música portuguesa. Nos 12 álbuns gravados entre 1970 e 2011, apontou novos caminhos musicais e aprimorou ideias, sem nunca se repetir. Paralelamente, mas sobretudo na década de 70, acompanhou e colaborou com os grandes inovadores da canção de protesto e de intervenção, de José Afonso e Adriano Correia de Oliveira a José Mário Branco e Sérgio Godinho o último destes titãs que ainda caminha entre nós, depois da morte de Fausto, durante a madrugada de segunda-feira, vítima de doença prolongada. Tinha 75 anos.

A notícia foi confirmada por Luís Viegas, da agência Ao Sul do Mundo, que representava o guitarrista, cantor, compositor e arranjador. No Instagram, lamentou a perda de um amigo, de "um herói, de um autor único, que não se expunha nem aparecia publicamente sem motivo. Não exagerou. Após concluir a sua trilogia sobre a exploração marítima portuguesa, com Em Busca das Montanhas Azuis, em 2011, e apresentar ao vivo aquele que viria a ser o seu último disco, o histórico cantor evitou as entrevistas e tocou esporadicamente. Subiu ao palco pela última vez em Novembro de 2022, para comemorar os 40 anos do seminal Por Este Rio Acima, na Aula Magna.

Os chamados “descobrimentos” portugueses inspiraram Por Este Rio Acima (1982), Crónicas da Terra Ardente (1994) e Em Busca das Montanhas Azuis (2011), mas não só. Ecoam também nas faixas de outros discos, a partir de Histórias De Viageiros, o seu último trabalho editado pela histórica Orfeu, em 1979. O interesse pelo assunto é facilmente explicado pela sua biografia: Fausto nasceu em 1948, em pleno Oceano Atlântico, a bordo do navio Pátria, que viajava de Portugal para Angola. E cresceu na cidade angolana Nova Lisboa (actual Huambo), até vir estudar para a metrópole.

Uma história que dificilmente se escuta online

Fausto teve a primeira banda, Os Rebeldes, ainda durante a adolescência, em África, influenciado pelos Beatles e The Shadows. Mas foi já em Portugal, em contacto com vultos da canção coimbrã e de protesto, como Adriano Correia de Oliveira ou José Afonso, com quem tocou por exemplo no Coro dos Tribunais, que começou a descobrir a sua voz. Estreou-se com um EP homónimo, de sete polegadas, em 1969, e lançou o primeiro álbum, também chamado Fausto, em 1970, ambos com o selo da Philips.

A sua discografia não conheceu novos desenvolvimentos até à queda da ditadura, em 1974. Foi nesse ano que gravou e editou o segundo e politicamente engajado álbum, P'ro Que Der E Vier, já com o selo da Orfeu; que começou a trabalhar no terceiro e também politizado, Um Beco com Saída, lançado passado um ano; e que esteve envolvido na fundação do Grupo de Acção Cultural – Vozes na Luta (GAC).

Ainda na década de 70, gravou mais um par de álbuns para a Orfeu – Madrugada dos Trapeiros (1977) e Histórias de Viageiros (1979) – e colaborou com José Mário Branco e Sérgio Godinho na banda sonora do filme A Confederação (1978), de Luís Galvão Teles. Sem nunca abdicar de apontar novos caminhos para a música popular e moderna portuguesa. E, no entanto, é impossível comprar ou encontrar estes discos – como tantos outros da mesma época – nas plataformas de streaming musical.

Esta fase fulcral do seu percurso só não está ainda mais apagada das memórias graças aos esforços de meia dúzia de preservacionistas que se dedicam a meter canções e, por vezes, discos inteiros no Youtube, indiferentes às vontades e aos caprichos das editoras e outras empresas que detêm os direitos de autor. Isto não acontece apenas com os discos Fausto Bordalo Dias, repita-se. Há um número considerável de gravações fundamentais da música portuguesa neste limbo. Até há uns anos, passava-se o mesmo com os álbuns de José Afonso, por exemplo.

O Fausto que todos conhecem 

A história de Fausto, no Spotify e nas restantes plataformas de streaming, começa apenas em 1982, com Por Este Rio Acima, o primeiro capítulo da conhecida trilogia da diáspora, editado originalmente pelo selo Triângulo da Sassetti e reeditado passados apenas dois anos pela CBS, entretanto absorvida pela Sony.

A partir daí, encontra-se tudo online. Os álbuns O Despertar dos Alquimistas, Para Além das Cordilheiras e A Preto e Branco, gravados ao longo dos anos 80. Os três registos de originais que foi compondo e gravando calmamente ao longo das décadas seguintes – Crónicas da Terra Ardente, em 1994; A Ópera Mágica do Cantor Maldito, de 2003; e o derradeiro Em Busca das Montanhas Azuis, em 2011. Há até um par de colectâneas e duas gravações ao vivo, incluindo um registo dos concertos dos Três Cantos, projecto que o reuniu com Sérgio Godinho e José Mário Branco, em 2009.

Quando o primeiro-ministro Luís Montenegro escreve que o contributo que [Fausto Bordalo Dias] deu à música e à portugalidade são eternos e vão continuar a inspirar-nos, é nestes discos e canções que está a pensar, e não no labor revolucionário. Quando a ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, citada em nota de pesar, afirma que Fausto legou-nos uma das mais belas memórias de Abril, uma música sublime – Por este rio acima/ Os barcos vão pintados/ De muitas pinturas” – idem.

Numa entrevista a Nuno Pacheco, para o jornal Público, a propósito dos concertos de Três Cantos, Fausto apontava que “há canções que não pertencem ao passado, ao presente ou ao futuro, estão nas três dimensões. São coisas que nunca passam. Algumas até ganharam actualidade com o tempo, ficaram cada vez mais actuais.” Na década de 1970, ele fez muitas dessas. Era bom que todos pudessem ouvi-las.

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