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Respirou durante décadas como a sombra de um Bairro Alto onde cabia toda a Lisboa nocturna. Anos depois, floresceu sozinha, a dinâmica alterou-se pelas portas, os dias encheram-se de gente, as noites de vida. A Bica ainda é o pregão, o bairrismo, os manjericos e as marchas, mas nesta Lisboa metamórfica, depois do fecho do Bicaense, qual é o futuro do bairro?
É uma obrigatoriedade para quem desce do Bairro ao Cais. É ponto de passagem para locais e turistas, é casa de fado, é Lisboa contida em fachadas e cor e cantos por descobrir. Mas a Bica – mais concretamente a Rua da Bica de Duarte Belo – o coração deste bairro a meio caminho entre dois emblemáticos centros nocturnos, nem sempre assim foi. A história desta varanda do Tejo alterou-se com o tempo: dos miúdos na rua, dos cafés, lojas e mercearias aos bares e restaurantes, passaram-se algumas décadas. A alteração, conta-nos Mikas, uma das mais importantes figuras lisboetas na criação de espaços, começa nos anos 90.
Foi ele que em 1997 ou 1998 – "não sou muito bom com datas" – para ali levou o WIP, um espaço que casava cabeleireiro, loja de roupa e bar. A razão, diz, era "a necessidade de sair do circuito normal, do Bairro Alto, onde acontecia a noite. E quando fui para a Bica, a Bica era muito distante. Do Bairro para lá parecia sempre uma distância enorme. Quando eu disse que ia abrir uma coisa na Bica toda a gente me disse ‘isso é tão longe’." Mas o plano foi em frente e o espaço foi ganho. Seguiu-se o Outro Tom, "onde se tomava chá e se escolhiam discos", e a tríade completou-se já perto do virar do milénio, com o Bicaense. A Bica de Mikas era diferente: "Quando abrimos o espaço, a Bica era bairrista, à antiga. De tal maneira que as pessoas da Bica passavam e ficavam a olhar para aquilo. Perguntavam ‘mas o que é isto?’. A Bica era de tal maneira bairrista que chegámos a ter ameaças de morte, acusaram-nos de querer destruir e descaracterizar o bairro. Não foi fácil, mas nós tínhamos uma atitude tão positiva que acabou por contagiar os vizinhos."
Foi com ele que a dinâmica se alterou. A abertura dos três espaços seria o propulsor para uma nova vida no bairro e, pouco tempo depois, começam a chegar outros conceitos. "O Bicaense começa a crescer, começa a ganhar mais espaço, aquela zona começa a ser de gente jovem: designers, arquitectos, começam todos a indentificar-se com aquilo, era o pólo de atracção. E começa assim o boom". Sobre a nova Bica, Mikas diz que se recomenda, ainda que o plano que lhe havia traçado já não seja a realidade. "Era uma ideia minha, uma Bica com os bares todos, com dinâmica própria, uma coisa viva, e isso começou a desaparecer (...) acho que cada um começou a ficar por si. Quando lá estive tentei sempre unir as pessoas, unir os bares, para fazer coisas, festas, projecções. E quando saí, aquilo começou a ficar completamente desunido. Acho que esta nova Bica sofreu com isso, não se saberem juntar, não pegarem num projecto maravilhoso, com onda. E acabou por perder dinâmicas muito intensas."
Anos depois – já Mikas havia deixado o WIP e o Outro Tom – Hugo Gomes de Sousa foi a figura a suceder-lhe para mudar o Bicaense de mãos. A relação com o bairro dura há 15 anos. Para ele, a Bica é "uma outra noite, de uma outra Lisboa que progressivamente está a desaparecer". A degradação do ambiente é uma das grandes causas, explica, "as pessoas não se sentem confortáveis numa rua no estado em que esta está, em que tudo falha desde a higiene até à segurança. Parece que se abandonou uma das ruas mais carismáticas de Lisboa. O que se tem passado por aqui não tem descrição possível. E a inoperância das autoridades responsáveis é enorme."
Esta foi, aliás, a sentença de encerramento do Bicaense, a referência maior da Bica, que aconteceu no ínicio deste mês. "É impossível manter um negócio com o mínimo de qualidade e identidade com este tipo de ambiente à porta, pelo menos nos termos em que tinha sido concebido o Bicaense." Sobre a possibilidade de encerramento de outros espaços pelas mesmas razões, Hugo não tem dúvidas: "Alguns já fecharam, outros poderão seguir-se. Outros vão abrir com certeza. Uma coisa é certa, se nada mudar por esta zona temo que estejamos a perder um dos segredos mais mal escondidos de Lisboa."
Alguns passos abaixo está a Vai Tu, uma das colectividades mais importantes do bairro. Francisco Júnior é brasileiro mas a Bica é pouso diário para o agente imobiliário. Sentado, em "pré-almoço", como lhe chamou, vai sorrindo e explicando a Bica como a vê. "Apesar das pessoas terem saído e de haver mais turistas, o bairrismo continua. As paredes ouvem. É preciso saber viver aqui. Há sete anos, vendia aqui o metro quadrado a 600€, nem estrangeiros queriam. Hoje custa 6000€ e não há nada disponível."
Ainda se lembra de haver turistas a subir o bairro com medo, lembra-se da degradação, do aspecto de favela. Agora não, "houve uma componente muito importante de reabilitação à conta dos privados, não dá para criticar. É fácil apontar o dedo e dizer que toda a gente quer correr com quem cá vive". Chega-se para a frente na cadeira: "Desculpe, esta colectividade pagava 78€ por mês. Um prédio inteiro. E isso não pode ser, nenhum senhorio consegue. Até que chegou um iluminado e comprou o prédio."
Sobre esta Bica, Francisco diz que a tendência é para abrir, à excepção do Bicaense, e que a comparação com o passado é impossível, mas há problemáticas emergentes que devem ser abordadas. "Está melhor, mas isso cria outros problemas. Antes era uma favela, ninguém queria vender droga aqui, agora é very typical, já querem. E isso incomoda os residentes, é uma questão pública. Fecharam o Adamastor, onde faziam merda, agora é isto. O mercado era lá em cima, agora entraram no bairro e chateiam as pessoas aqui. Mas de resto está tudo igual."