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Uma das perguntas que mais inquieta o colectivo Infraestrutura Pública, um grupo de cidadãos que vive em Lisboa e que não se conforma com aquilo que considera ser a retirada de direitos básicos aos cidadãos ao longo dos últimos anos, é se, afinal, estamos a viver o progresso ou o retrocesso no que respeita ao espaço público. Coloque-se a questão de outra forma: "As casas de banho boas, com qualidade, e bonitas são todas antigas, feitas no século passado. E foram sempre gratuitas. As mais recentes são as que têm menos condições, estão sempre avariadas e não são funcionais. E o acesso é pago", enquadra Marta Sternberg, um dos membros do grupo. Se olharmos para os fontanários da cidade, o cenário repete-se. "Foram construídos para que a água pudesse ser dada aos cidadãos, mas também são pontos de encontro, têm um papel social muito importante", e hoje, em grande parte, não funcionam. Damos alguns exemplos: o Chafariz de Benfica (reabilitado mas sem água), o Bebedouro dos Anjinhos (Rossio) ou o Chafariz do Alto do Pina (Penha de França), os três considerados monumentos. "Em 2024, devíamos estar a lutar por mais direitos, mas afinal ainda temos de estar a lutar pelos que nos retiraram", diz-nos Marta.
Depois do protesto pela reposição de mobiliário público na Praça Paiva Couceiro, na Penha de França (na sequência de a Junta de Freguesia ter retirado cadeiras durante a pandemia, argumentando com a necessidade de manter o distanciamento social), e de ter iniciado uma série de acções reivindicando o direito a sanitários públicos gratuitos na cidade, a Infraestrutura Pública esteve na semana passada (a última de Fevereiro) em frente ao Chafariz do Intendente a oferecer água a quem tivesse sede, lembrando a funcionalidade deste tipo de equipamento público. Durante aquelas três horas, "o chafariz voltou a ter água". A acção completa a tríade pensada pelo colectivo, quando este se começou a formar, no Verão do ano passado. "A nossa luta pelo espaço público é uma trilogia de direitos: a sentar, aos sanitários e à água", sumariza Marta. Mas, ao mesmo tempo, além de uma chamada pelos direitos dos cidadãos, a acção do Intendente foi pensada como um "acto de resistência contra a indústria da água engarrafada", explica Marta à Time Out, chamando a atenção para o facto de estarmos numa época "em que se fala tanto no ambiente e na sustentabilidade".
O colectivo argumenta que "os bebedouros de Lisboa foram esquecidos, abandonados, desligados", e que, tal como no caso dos sanitários públicos, os cidadãos mais novos podem já nem ter memória de que um dia se chegou a beber água gratuitamente na cidade. "Pagamos impostos, somos contribuintes. É absurdo termos de pagar por coisas tão básicas. Se não pagamos por ir à casa de banho de uma biblioteca, seja para beber água, lavar as mãos ou fazer xixi, por que é que havemos de pagar na rua?", questiona Marta. É por isso que "a luta pelas casas de banho públicas é também a luta pelas fontes de água", porque "a água não é para ser tratada como um negócio mas como um direito de todos e um bem comum", lê-se numa das páginas de redes sociais do colectivo, que remata: "Um resultado da comercialização da água foi a normalização do desaparecimento de fontes". Para Marta, chegar a este cenário é estar perante uma "crise". "O que estamos a pedir não são coisas extraordinárias, são completamente normais. Mas as pessoas já nem sabem ou não se lembram que faz parte dos seus direito e estas medidas, agora, já não fazem parte dos programas", diz.
Câmara vai instalar 75 sanitários
Em 2022, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) assinou um contrato com a empresa JCDecaux que prevê, além de 2000 abrigos para paragens de autocarros, 900 mupis e 125 painéis digitais, a instalação de 75 sanitários públicos "por toda a cidade". Quanto a este segmento, foi "dada prioridade a áreas na proximidade de terminais de transportes públicos, praças de táxis, espaços verdes da cidade e zonas de entretenimento nocturno", informa a autarquia à Time Out. "A execução do contrato terá a sua conclusão no decorrer deste ano de 2024", continua a CML, adiantando que cada casa de banho pública terá o custo de 10 cêntimos por utilização (a autarquia alega que, quando os equipamentos são gratuitos, sujeitam-se a práticas pouco próprias) e que 10% dos equipamentos são desenhados para incluir o acesso a pessoas com mobilidade reduzida.
"Porquê apenas 10% e não todos? E por que razão temos de pagar por um direito básico como ir a uma casa de banho? Acho maravilhoso e super necessário instalarem-se casas de banho em jardins e parques públicos, como o da Bela Vista ou Monsanto. Se as pessoas vão passar o dia no parque, é normal que precisem de ir à casa de banho. Mas fica a faltar o problema das ruas e das praças da cidade. Há casas de banho constantemente avariadas, não sinalizadas, fechadas ou que eram gratuitas e passaram a ser pagas. Assistimos, em tempo real, a colocarem cancelas nas casas de banho no Largo do Carmo e elas foram sempre gratuitas", relata Marta Sternberg. Também no Terreiro do Paço, o preço de utilização da casa de banho (gerida pela empresa Controlo de Passagem) passou de 50 cêntimos para um euro. "Como, se ali ao lado, no Cais do Sodré, o preço é de 50 cêntimos? O que justifica estas diferenças? Não há regulação?", pergunta a fundadora da Infraestrura Pública, contando que o grupo esteve precisamente, em Fevereiro, no Cais do Sodré – onde o uso do sanitário chegou a ser gratuito – com 10 euros em moedas para oferecer às pessoas que queriam ir à casa de banho. "Eram tantas pessoas a precisar que acabámos por estar ali só dez minutos", concretiza.
Por outro lado, há também diferenças nos horários aplicados aos sanitários, que o colectivo interpreta como uma distinção de classes. "Por que razão a casa de banho do Príncipe Real fecha às 20.00 e a da Penha de França às 17.00?" E há, ainda, segundo a Infraestrutura Pública, sanitários que foram desaparecendo. "Temos imensas provas de casas de banho que foram tapadas com cimento ou metal." Por último, o caso dos sanitários nas estações do Metropolitano de Lisboa é "assustador", qualifica o colectivo, apontando para equipamentos fechados, quando é pago um bilhete para "utilizarmos os serviços daquela empresa". Além de andar com uma casa de banho portátil, utilizável e construída pelos membros do colectivo, em diferentes pontos da cidade, a Infraestrutura Pública está a fazer um levantamento, in loco, sobre as diferentes fragilidades e problemas de acessibilidade que possam ser apontados aos equipamentos da cidade.
Recuperar direitos perdidos
A Infraestrutura Pública é um colectivo informal criado em Setembro de 2023, que passa "muito tempo na rua" e cuja luta principal é restituir à população o direito ao espaço público, sem que esteja associado à lógica do consumo. "Juntámo-nos porque a cidade é uma coisa que nos está a ser roubada, porque temos uma arquitectura hostil. Sem nos apercebermos, o espaço público vai-se reinventando e não no bom sentido. Mudam a cidade todos os dias, em silêncio, destruindo o direito de a usarmos", alegam. Marta Sternberg considera uma fonte de água ou uma casa de banho pública algo tão básico quanto a iluminação da cidade ou a recolha do lixo.
A CML declarou à Time Out ter iniciado "o levantamento das instalações sanitárias públicas existentes na cidade de Lisboa e geridas por diferentes entidades, designadamente, juntas de freguesia, Carris, Metropolitano de Lisboa, CP e Transtejo", para que a análise deste mapa possa ser mais clara. "Assim que o levantamento estiver concluído, os resultados serão divulgados", informa o organismo.
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