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Isto não é um remake, importa dizer. O tão esperado live-action de A Pequena Sereia, mais do que recuperar, reimagina o clássico de animação da Disney, vencedor de um Óscar que, em 1989, adaptou de forma livre – isto é, com muitas liberdades artísticas – o conto homónimo do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen. Agora, tal como na versão animada, não se vislumbram entraves à criatividade dos responsáveis, actualizada para os tempos em que a representatividade se impõe. De repente estamos nas Caraíbas, a protagonista é interpretada por Halle Bailey e o resto do elenco mantém a tendência multicultural: Ariel e as suas irmãs representam mais do que nunca “as filhas dos sete oceanos” e há uma nova personagem, a rainha Selina, mãe de Eric, também interpretada por uma actriz negra, a britânica Noma Dumezweni. “É muito entusiasmante, porque isto não é 1990, é 2023, e estamos cada vez mais inclusivos nos nossos pontos de vista”, assegura o realizador Rob Marshall.
“A Ariel não só não tem medo do mundo à superfície, como embarca numa jornada épica para provar que tem razão, e portanto o filme é de facto sobre [cultivar a] tolerância e lutar contra preconceitos – e o que é interessante é que não tínhamos qualquer agenda, estávamos só à procura da melhor pessoa para interpretar a personagem, e podíamos ter escalado [actrizes de] qualquer etnia. É por isso que estamos profundamente orgulhosos de ter a Halle a interpretar o papel [de protagonista] porque ela é brilhante a fazê-lo”, diz, antes de destacar também o facto de, apesar de continuarmos a ter uma jovem sereia com sede de aventura, a razão porque Ariel desobedece ao seu pai prende-se menos com o seu amor instantâneo pelo príncipe Eric e mais com uma certeza íntima de que, ao contrário do que a querem fazer crer, tem todo o direito a escolher o seu próprio caminho.
O romance continua lá, claro. Mas, ao contrário do que acontece no clássico de animação, desta vez a Ariel não faz ideia que tem de beijar o príncipe e, portanto, o seu objectivo é menos seduzi-lo e mais conhecê-lo. Ao que parece, não só se sentem os dois fora de pé, como gostam de coleccionar coisas. É verdade, Eric (interpretado por Jonah Hauer-King) também tem uma colecção e tanto, e essa é uma das razões que o levam, nesta versão, a criar uma conexão tão profunda e imediata com a sua cara metade. “Se sabemos quem é a Julieta, também temos de saber quem é o Romeu. Foi o que tentámos fazer, dar-lhe uma nova vida, para que fosse mais do que apenas uma cara bonita”, esclarece John DeLuca. Sem spoilers, a decisão (arriscamos dizer) não só tornou o personagem mais interessante, como tornou o encontro romântico muito mais divertido, passeio de barco incluído.
Eric não foi, contudo, o único personagem a receber um makeover. A Úrsula deixou de ser apenas a bruxa má para ser a irmã desterrada do rei Tritão, com quem continua a ter uma rivalidade, embora muito mal explicada; e a Scuttle – que na versão animada era uma gaivota, uma espécie tipicamente costeira, que raramente se aventura em mar alto – é agora um ganso-patola, uma ave famosa por realizar mergulhos de até 40 metros de profundidade (o que, desvendamos, faz todo o sentido para uma nova cena em particular). O Flounder, o peixe tropical, e Sebastian (ou Sebastião), o caranguejo, continuam mais ou menos os mesmos (conte com uma redução nas expressões faciais, como já seria de esperar), assim como o pai de Ariel, interpretado por Javier Bardem. “Os meus filhos ainda não viram nada. Mas tenho a certeza que vão ficar maravilhados, porque tecnicamente é soberbo e, mais importante, o coração e alma do filme chega a todos, adultos e crianças”, promete Bardem. “A Ariel é, desde o início, uma mulher forte que luta por ser quem quer. É uma mensagem importante.”
No que à música diz respeito, destaca-se o regresso de Alan Menken. O compositor – responsável pela banda sonora original, que escreveu com Howard Ashman (1950-1991) – não só foi responsável pelos novos arranjos para as canções que todos conhecemos e adoramos, como compôs mais três, juntamente com Lin-Manuel Miranda (famoso pelas bandas sonoras de Encanto e Hamilton). “Eu sei que tenho um pé em cada mundo. Por um lado, sou o guardião da chama original e, por outro, sou um colaborador nesta nova versão, e eu queria ser um bom colaborador. Por isso, no fundo, tentei encontrar um equilíbrio”, confessa Menken, que tentou “fazer com que parecesse que estamos a ouvir algo pela primeira vez, mais uma vez.” Sobre as alterações realizadas, esclarece ainda: “Não há nada de novo nisso. Todas as obras são revistas à medida que se fazem novas versões, e uma das principais mudanças foi feita por razões económicas, mais do que outra coisa qualquer. Não iniciei nenhuma dessas alterações em particular, mas são boas e o filme funciona lindamente.”
Talvez sinta falta de “Daughters of Triton” ou de “Les Poissons”, mas não se preocupe. Os hits não foram a lado nenhum. “Quando o Howard e eu escrevemos para A Pequena Sereia pela primeira vez, escrevemos o que queríamos escrever e achámos que era quase tão perfeito quanto poderia ser. Mas isso fui eu com o Howard e, como é óbvio, sempre que adaptamos um filme de animação para live-action, temos noção que são formatos diferentes e que vão ter de ser feitas alterações para melhor servir o formato em questão. Por exemplo, na abertura desta nova versão, foi propositadamente adiado o primeiro número musical, para preparar o caminho para o grande momento que é o “Part of your world” (“Fora do mar”, na versão em português), porque queríamos que o impacto fosse o maior possível.” O mesmo se aplica a “Aqui no mar”, que continua a ser uma das cenas mais icónicas, inclusive em termos visuais.
O realizador Rob Marshall e o co-produtor John DeLuca já tinham tido oportunidade de dar vida a sereias em Piratas das Caraíbas: Por Estranhas Marés (2011) e apresentado uma sequência subaquática em O Regresso de Mary Poppins (2018), mas criar – para além de múltiplas cenas debaixo de água – um número musical inteiro foi um desafio completamente diferente. “Tínhamos um actor de carne e osso [neste caso, a actriz Halle Bailey] e centenas de criaturas marinhas que tínhamos de criar [e pôr a dançar] do nada. A primeira coisa que fizemos foi olhar para o trabalho do próprio Walt Disney. Ele trabalhou com uma companhia de ballet russo para o filme Fantasia (1940) e, portanto, além de animadores, havia verdadeiros bailarinos, e pensámos que poderíamos fazer o mesmo.” Com coreografia de Joey Pizzi e Tara Nicole Hughes, 16 dançarinos do Alvin Ailey American Dance Theater deram vida a peixes, medusas, algas e até lapas de corpos gelatinosos. “Temos vídeos da companhia a fazer a dança das lapas, com pequenos chapéus.”
Divertida e sentimental. Assim se resume A Pequena Sereia. Apesar das mudanças já mencionadas, a essência do live-action é a mesma do original, e é precisamente por isso que Marshall e DeLuca querem crer que será um sucesso com o público. Afinal, todos sentimos, a determinada altura da vida, que não nos ouvem ou que não percebem quem somos e o que queremos, e temos, mais tarde ou mais cedo, de lutar pelos nossos ideais. “Para mim, significa tudo poder assumir este papel que conheço e amo desde que me lembro. A Ariel é realmente uma jovem independente, apaixonada e determinada, e vê-la na sua jornada é muito especial”, afirma Halle Bailey, que se confessa profundamente agradecida pela experiência e a oportunidade de representar a sua comunidade. “Eu falei com os meus avós, que viveram em tempos muito, muito diferentes. A minha avó, por exemplo, tem memórias vívidas da sua mãe e da sua avó nos campos de algodão, por isso ver a sua neta a interpretar o papel principal num filme como este, deixa-me muito orgulhosa e emocionada.”
Na versão dobrada para português, é Soraia Tavares quem dá voz (falada e cantada) à mais nova das filhas do Rei Tritão. Ricardo Soler interpreta o príncipe, enquanto João Frizza e Ana Cloé dão vida aos famosos amigos de Ariel, o caranguejo Sebastião e a divertida Scuttle, respectivamente. “Esta personagem diz-me muito. O meu nome é Pequena Soraia no Instagram já há muitos anos, e a Disney escolher esta actriz [Halle Bailey] e perceber que, para além de ser excelente, também traz ao de cima esta questão da representatividade, deixa-me ainda mais feliz por fazer um bocadinho parte deste projecto. Quando vi os primeiros vídeos de crianças e jovens negras a ver o trailer, a primeira coisa que pensei foi que também queria ter sentido essa felicidade e ter tido mulheres negras que me inspirassem”, diz Soraia Tavares, que já pode ouvir a interpretar as canções em português no Spotify.
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