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Artigo originalmente publicado na edição de Verão 2024 da Time Out Lisboa
Mudar de rumo – ou dar simplesmente uns passos atrás –, quando tudo parece correr bem, pode ser uma decisão arriscada, mas também de sobrevivência. Se Francisco Martins, ou Kiko, nada fizesse, os restaurantes que tem de portas abertas – O Talho, a Cevicheria, O Poke, O Boteco e o Las Dos Manos – continuariam seguramente a ter sucesso e o chef continuaria a ter a presença mediática que lhe conhecemos, mas, ao fim de tanto tempo, há mais caminhos para explorar – e até por provar. Aos 45 anos, o chef voltou para a cozinha a tempo inteiro, apurou a carta d’A Cevicheria, acaba de abrir em Campo de Ourique o LeBleu, um restaurante onde se mostra de forma mais depurada, e prepara-se ainda para abrir aquele que será o mais ambicioso dos seus projectos, um restaurante de fine dining a apontar às estrelas. “Eu quero ir jogar na primeira liga, quero criar um projecto para estar no mais alto nível”, diz-nos.
Quem o ouve falar, sente a energia renovada. É fácil perceber que há um novo capítulo a iniciar-se na história de Kiko. E isso não significa uma ruptura com o passado, faz questão de frisar. “Nem diria que é uma mudança de linha”, afirma. “Estas frases de grandes rupturas com o passado só fazem sentido se o passado for mau, mas o meu passado não é mau. Estou super-contente com o meu passado, já fechei restaurantes, como muita gente, aprendi muito com os meus erros e acho que das coisas melhores da vida foi ter tido a hipótese de ter falhado”, admite. “É sempre aquela frase bonita que uma pessoa ouve, que aprendes com os teus erros, mas é mesmo verdade. Eu aprendi imenso e hoje em dia tenho mais liberdade, tenho mais calma e menos necessidade de querer agradar a toda a gente.”
O LeBleu, que abre agora em Campo de Ourique, é disso o melhor exemplo. “Isto não é um restaurante democrático nem consensual, não tens aqui uma arrozada de camarão, um peixe grelhado ou um bife com batatas fritas, mas eu acho que vai conseguir conquistar muita gente”, antecipa. “É um projecto que é consequência da versão 2.0 do Kiko, falando à jogador de futebol”, brinca. E que versão é essa? “É uma tentativa de não adormecer, de não cruzar os braços e de não me agarrar às bengalas do passado. [Quero] tentar mostrar outra vez que ainda tenho muito para dar ao mercado em Portugal”, atira, com a certeza de que “as pessoas que vierem aqui vão sentir a mesma paixão pela cozinha, mas vão sentir uma evolução gastronómica”. “Evolução a nível de técnica e um desejo de querer surpreender as pessoas com coisas diferentes”, elabora.
Focada no Atlântico, e no que de melhor este tem para nos dar, a carta divide-se entre entradas e principais, e são poucos os pratos que não brincam com os sentidos de quem se senta à mesa. Nunca a vontade de arriscar foi tão notória da parte de Kiko, bem como o desejo de arriscar. O niguiri de lírio (7,60€/dois) onde o habitual arroz é substituído por um marshmallow feito com o caldo do peixe e por isso carregado de sabor, é um bom espelho disso, tal como o pastel de nata com enguia (5,70€) ou o crème brûlée com mexilhão fumado (11,70). Nada é realmente o que parece.
“Vivemos uma era da simplicidade e da simplificação e não acho que este restaurante seja espelho da época, acho que é um restaurante que tenta mostrar produto, tenta mostrar técnica, mas acima de tudo tenta brincar um bocadinho com a tua maneira de ver as coisas”, explica, destacando a “originalidade do espaço”. “Não é uma tentativa de andar a ver o que os outros fazem. Eu prezo muito a originalidade na cozinha”, garante, não conseguindo, ainda assim, ver este novo restaurante como o mais autoral dos que abriu até agora. “Vais à Cevicheria e diria que 80% dos pratos são autorais.” Ainda assim, conta, há um trabalho “de alguma limpeza de algum excesso, de muitos ingredientes”. No fundo, mais elegância, sem qualquer juízo de valor. “Por exemplo, eu sinto que o bacalhau à Brás é uma evolução. No Surf & Turf, que fechou no Time Out Market, nós tínhamos um bacalhau à Brás e eu achava aquele prato uma coisa super-evoluída, achava que podia estar em muitos fine dinings. Era uma cebolada, depois levava um lombo de bacalhau por cima, levava um gel de salsa, uma gema de ovo confitada, batata palha caseira e uma espuma de batatas e pó de azeitonas. Aquele bacalhau era dos pratos mais vendidos e era feito na mesa. Aquilo tudo em doses mais pequeninas e bonitas, numa loiça bonita como esta, também podia estar num fine dining. Agora, há uma evolução de lá para cá? Há. E essa evolução está em tentar purificar, ser mais puro, mais elegante, menos complicado”, reflecte. O resultado? No LeBleu esse mesmo bacalhau à Brás (8,40€/dois) é um bonito snack que se come em duas dentadas.
Já nos principais, que podem perfeitamente ser partilhados, há um polvo com enguia no carvão e pastinaca (27,90€), ou um surpreendente Wellington de pregado e camarão (78,90€), mas também um risotto de aipo e bacalhau negro (26,90€), que não é realmente um risotto, e um lagostim com tagliatelle nero (38,70€), que de pasta não tem nada e é, sim, feito de lula.
Mas atenção: “Não é um fine dining, é um espaço divertido, é um espaço descontraído”, defende o chef, admitindo, porém, que o LeBleu é um caminho para o próximo passo que promete dar que falar. “Nada do que está aqui estará no outro restaurante, mas isto é uma mudança. Se agarrares nestes pratos e fores comparar, por exemplo, com a Cevicheria, mesmo a última carta, não tem nada a ver.”
Regresso às aulas
Sem querer arriscar uma data de abertura e apontando apenas para 2025, Kiko Martins nunca esteve tão seguro do seu caminho. Embora diga que não gosta da expressão “fine dining” é isso mesmo que vai ter – na zona do Rato. Também não quer falar em estrelas Michelin, mesmo que seja esse o campeonato onde se vai posicionar. “E não é pelo peso ou pela pressão”, garante. “Não é um galardão que me vai emocionar ou que me vai fazer sentir mais feliz. Claro que se me disseres assim: vais montá-lo e vais receber uma estrela, que venha, que é super-importante e eu reconheço isso tudo”, diz. A questão, aponta, é não querer fazer algo a régua e esquadro, ou seja, pensar e fazer um restaurante à medida do Guia. “A roda, todos sabemos como funciona, agora eu não gostava que fosse tudo igual. Acho que o David Muñoz, quando estava a fazer o DiverXo [três estrelas Michelin e número quatro no The World's 50 Best Restaurants], não estava a pensar nisso.” E não significa que o objectivo possa ser menos destemido: “Eu gostava que fosse um restaurante que os meus colegas, os meus amigos, e todas as pessoas que nos visitam e gostam deste género de coisa dissessem, ‘pá, fogo, curti imenso’”. “A missão não é ser o rei da cocada, mas é fazer alguma coisa de que eu me sinta orgulhoso. Acho que nós só somos realmente bons a fazer aquilo que realmente gostamos e eu gosto realmente disto e acho que posso ser realmente bom aqui”, acrescenta, sem ponta de arrogância.
Pelo contrário, Kiko conta várias vezes, com entusiasmo, como voltou a estudar e a mergulhar a sério na cozinha. “Na transição pós-Covid, eu senti que queria voltar à cozinha outra vez e percebi que precisava de voltar a estar numa cozinha como cozinheiro”, assume. “Eu acho que o mundo te vai encaminhando para outras coisas e vais perdendo o tempo e vais sendo completamente consumido por tudo. Isto é uma área que te consome muito e quando começas a fazer televisão, quando começas a ser uma personagem, uma cara, de repente estás em todo o lado e és chamado para muitas coisas e tens de aprender a dizer que não”, conta, confessando ter uma grande dificuldade ainda nessa parte. “Eu sou o senhor da minha agenda, mas é muito fácil que as pessoas se apoderem dela. Vou sempre dizendo que sim e por isso de repente tenho a agenda cheia de coisas e não tenho espaço para isto, não tenho espaço para ler, não tenho espaço para estudar, não tenho espaço para ir a um restaurante.”
Como é que se organiza, então? “Faço uma coisa muito criteriosa. Criei uma tabela de Excel em que ponho 40 horas dentro de uma cozinha por semana e dez horas de estudo, três horas de investigação, duas horas a ver sites de comida e a pesquisar, e cumpro à risca. Cumpro-a com a mesma dedicação em que me proponho a treinar uma hora de corrida.” Pelo caminho, conta, foi-se livrando do excesso. “Às vezes, tinha dias que era impossível. Pode haver um lado de vocação, de facilidade, de algum talento, mas não chega.”
Também por isso, no início do ano passado, decidiu ir trabalhar um mês para o The Sea, The Sea, em Londres, do chef português Leandro Carreira, de quem é amigo. “Claro que não fui recebido como um estagiário, passado um dia já estava quase a dar serviço, mas chegava até mais cedo e saía mais tarde que toda a equipa. Passei esse mês a fazer tudo, foi incrível. Foi super-importante para mim”, destaca. E recorda-se: “Quando voltei, trouxe dois livros sobre fermentações e umas coisas malucas, mas pensei assim: não vou ler isto. Mas a verdade é que se não vou ler, eu sou pura e simplesmente um gajo de rama. Estou aqui, ouvi umas coisas, mas não percebo nada disto. E comecei a ler.”
Hoje, não tem dúvidas de que esse tempo dedicado ao estudo tem sido fulcral. “Mesmo que eu não perceba ainda porquê, eu tenho a noção que vai ser fundamental. Acho que quanto mais souberes, mesmo que sejam coisas pura e simplesmente técnicas que não tenham nada a ver com cozinha, mais vais conseguir perceber melhor as coisas. E não é apenas [saber que] o salmonete come marisco e por isso é que sabe bem”, exemplifica. “É perceber porque é que as espécies mais profundas têm sabores mais intensos, porque é que as espécies que estão cá em cima e por isso estão constantemente a levar com sol desenvolvem um tipo de gordura diferente dos peixes do fundo do mar… Quando começares a entrar nestas pequenas subtilezas, mais facilmente poderás conseguir emocionar as pessoas. E isso é que é mesmo muito difícil”, acredita o chef, “cheio de pica”. “A lógica é sempre tentar trazer alguma diferenciação e alguma criatividade, com os riscos disso mesmo. E são riscos altos.”
Kiko sabe bem do que fala. Nos últimos anos, viu-se obrigado a fechar restaurantes onde apostou tudo, sendo o Asiático, na Rua da Rosa, talvez o caso mais óbvio. “Nunca é fácil, é uma decisão fria e quanto mais energia, tempo e carinho despendes nas coisas, mais difícil é. Eu perdi muitas horas da minha vida a fazer o Asiático, uma coisa grande, uma sala linda, e de repente tenho de fechar aquilo. Uma pessoa ia tentando, mas de repente vem uma pandemia que não controlas e tens de largar, senão não consegues viver. O Asiático era realmente o mais complicado, era o maior, a renda não baixava”, lamenta. Mas não sem reforçar que o negócio não é, nem pode ser, tudo. “No dia em que eu tiver de viver estas coisas pura e simplesmente por uma questão financeira, estou na área errada. Nós metemos um lado muito emocional nas coisas e por isso vamos sempre tentando encontrar uma maneira de dar a volta, mas sabes o que é mais difícil, muitas vezes? É actualizar as coisas”, garante. “O fecho é uma coisa evidente”, continua, dando a recente mudança de carta na Cevicheria como exemplo. “É preciso fazer, é preciso avaliar e é preciso ir progredindo para não estagnar. Não fazer é fazer, é fazer nada”, conclui.
Menos Excel, mais cozinha
“Sou muito apaixonado pela cozinha, sempre fui, desde muito novo, mas a vida foi-me levando para áreas diferentes na cozinha e inevitavelmente, quando se tem mais do que um espaço, começamos a adquirir funções mais administrativas, começamos a sentar-nos mais numa cadeira, a viver mais o Excel e outras ferramentas, e vamo-nos afastando, muitas vezes até inconscientemente e silenciosamente, da cozinha”, conta. “Graças à pandemia, eu apercebi-me que não era por aí o meu futuro, até porque tenho sócios competentes o suficiente para fazer essa parte bastante melhor do que eu e, por isso, optei por recentrar-me outra vez na cozinha”, acrescenta, respondendo-nos, sem hesitar, que em nenhum momento se sentiu vítima do seu sucesso. “Fui fazendo aquilo que quis e com o discernimento que fui tendo na altura, mas tenho hoje a clara noção de que quero dedicar mais tempo a esta área”, reforça o chef.
Para trás, ficam também histórias, ou lições, como aquela que em 2019 deixou tudo a falar sorrateiramente (ou nem tanto) da ida do chef Kiko a Marte, um mal-entendido que ganhou proporções de “grande mentira”. “Aprendi, principalmente, a não levar as coisas tão a sério. Eu acho que não estive bem nesse episódio, e é bom admitir as coisas”, confessa, deixando claro, no entanto, que não houve qualquer mentira, muito menos intenção de enganar seja quem for. “Aquilo ganhou uma proporção completamente descontrolada. Começou aquele ‘bafafa’ e a maior parte das pessoas ficou a achar que era uma mentira, que eu não tinha feito concurso nenhum, que tinha criado uma história e que tinha sido uma tanga de todo o tamanho. Agora perguntas: fizeste o concurso? Fiz. Ganhaste o concurso? Ganhei. O concurso era um concurso sério? Era”, explica, admitindo a dificuldade de recordar esses tempos. “Isto não sou eu, eu nunca precisei de andar aqui a tentar encontrar pessoas”, garante, mostrando-se mais maduro e confiante.
Talvez por isso também, a vontade de dar o passo arrojado que está prestes a dar. “Tenho maturidade e know-how de cozinha para fazer isto, e digo isto com muita humildade. Acho que a maior parte dos meus colegas da área dirão isto por baixo. Um dia disse ao Henrique [Sá Pessoa], ao [Vítor] Sobral, ao Zé [Avillez]: vou mandar-me para outros voos. E eles: não sei porque é que ainda não mandaste, é só quereres. Eu não acho que seja só querer, é querer e fazer. Mas dentro desta área, diria que os meus colegas me reconhecem como alguém que no dia em que quiser, vai fazer”, conclui. “Acho que é isto que é o giro da cozinha e da vida e estou numa fase óptima.”