[title]
Inaugura esta sexta-feira a mais recente exposição da Fundação Calouste Gulbenkian. Debruçada sobre a obra, mas sobretudo sobre o génio de Álvaro Siza Vieira, "Siza", como singelamente se intitula, está marcada por uma humanização sem precedentes daquele que foi o primeiro Pritzker português. A partir dos seus cadernos, item essencial para um desenhador compulsivo, a dupla de curadores – o galego Carlos Quintáns assistido por Zaida García-Requejo – revisitou a obra feita, mas sobretudo a obra imaginada e esboçada, os fascínios e adorações, os laivos de humor e de tédio.
"Não é fácil encontrar, em toda a história, uma capacidade de produção similar à do arquitecto Siza", começa por assinalar Quintáns, que trabalhou durante o último ano nesta mostra, reunindo elementos dos principais arquivos do arquitecto português, como é o caso do Canadian Centre for Architecture, em Montreal, da Fundação de Serralves, da Biblioteca de Arte da Fundação Gulbenkian, da britânica Drawing Matter e do próprio atelier de Siza Vieira, mas também de pequenas colecções particulares ou de instituições internacionais como o MoMA ou o Pompidou.
Cerca de 250 mil documentos depois, entre desenhos técnicos e páginas soltas, a dupla chegou ao esquema final – uma exposição dividida por dois pisos, com a arquitectura a abrir caminho e o lado mais íntimo de Siza numa segunda ronda pelo traço e o imaginário do autor. "O que vêem foi feito tendo um respeito absoluto pela Gulbenkian e pelo Siza, que são um conjunto. O Siza gosta de dizer que conheceu Picasso e Alvar Aalto através da Gulbenkian. E por isso ele está muito contente por estarmos aqui", reforça o curador, durante a visita de imprensa à exposição, que decorreu sem a presença do arquitecto português, fixado no Porto.
A inércia de Siza
Noventa fotografias (a idade de Álvaro Siza) formam a primeira visão da exposição, seguidas de uma dúzia de cadernos abertos, reproduções fac-símile de suportes de trabalho usados ao longo de décadas, e outros 30 originais. "Tivemos acesso a 350, 400 [cadernos], mas não sabemos ao certo quantos há. Ninguém sabe. Quer dizer, saberão, mas não nos dizem se são mil, quantos há. E o Siza continua a trabalhar com cadernos, normalmente de capa preta, alguns vermelhos. Esses cadernos contêm a inércia de Siza. Dizemos que o Siza mostra uma forma de pensar através dos seus desenhos, uma forma de pensar que está perfeitamente articulada nestes cadernos. Boa parte da exposição está feita através dos seus cadernos", adiciona Quintáns.
E é a partir daqui que o design expositivo da Change is Good de José Albergaria estende 147 metros de mesas em alumínio com 90 projectos, sequenciados em função de 30 verbos, de afastar a voar. Uns foram concretizados, outros não chegaram a sair do papel. E estão todos ali, à mão de semear, como se de uma enorme bancada de atelier se tratasse. "Tínhamos de explicar o Siza e a única forma de fazê-lo é explicar o Siza global. E para explicar o Siza que é global, temos de analisá-lo através de cada conceito que pensámos que poderia ser importante", esclarece ainda.
Juan Rodriguez, o fotógrafo convidado a capturar a obra edificada de Siza, deixou muitas mais imagens por mostrar. O material deu, por isso, origem a 15 minutos de projecção que interpelam o visitante durante o percurso expositivo. O momento abre ainda mais o apetite para o núcleo seguinte – dedicado aos livros, mas também à ideia de projecto total, um conceito inaugurado, segundo o curador, com a Casa de Chá da Boa Nova, no início dos anos 60. "Ele pensa que não se deve fazer nenhuma obra sem que se esteja a desenhar absolutamente tudo." A introdução abre caminho para uma selecção de peças de mobiliário onde, tal como na obra de Siza, a cadeira desempenha um papel fulcral.
Quanto aos livros, Carlos Quintáns trouxe exemplares da própria biblioteca – A Arquitectura de Álvaro Siza, de Peter Testa, o primeiro livro sobre o arquitecto português que comprou, há precisamente 40 anos e seis dias; o último foi adquirido há três semanas e está assinado por Siza.
O cubismo, a escultura e o ballet: as outras faces de Siza
O "Siza global" fica ainda mais global na Galeria de Exposições Temporárias. Um olhar sobre o homem – pela lente do seu traço – nas suas múltiplas dimensões. "Só o futebol ficou de fora", exclama Quintáns. Os trabalhos em aguarela são anteriores à passagem pela Escola Superior de Belas Artes do Porto. Logo a seguir, o "maior" auto-retrato em exposição – quatro por quatro (centímetros), feito sobre um pedaço de papel, recortado de um envelope.
Ao virar da esquina, espreita Picasso, num estudo de 1906. Além de um fascínio, que já vai longo, pelo pintor espanhol, a exposição não passa ao lado da dualidade entre a pintura e a arquitectura. "A arquitectura de Siza deve entender-se através do cubismo, na forma como ele assembla peças e estabelece relações novas. Podemos ter um Siza que tem a ver com o Surrealismo, um Siza que tem a ver com o Expressionismo, mas a ligação com o Cubismo é absoluta.
À direita, a parede branca está coberta de auto-retratos. De mãos, mas também de pés, desenhados por um Siza eventualmente cansado, entediado com a vida de hotel que levou durante tanto tempo. À esquerda, a colaboração estreita com o próprio arquitecto dá frutos. Três desenhos de Amadeo de Souza Cardoso, indicados por Siza, peças de arte africana, testemunhos da afinidade com a escultura, uma série de retratos feitos pelo arquitecto com familiares e amigos como protagonistas, e uma pintura de Maria Antónia Siza, a mulher de quem se despediu precocemente, em 1973.
Álvaro também chegou à cenografia, em particular ao ballet. Expostos como se de um corpo de baile se tratasse estão 60 desenhos – uns mais técnicos do que outros – feitos para um espectáculo do Ballet Gulbenkian, de 1996. A encomenda de Jorge Salavisa para quatro peças de coreógrafos emergentes tocou numa das artes mais caras a Siza, para quem o desenho sempre foi espécie de compulsão. A prová-lo, há ainda esboços feitos sobre as tradicionais toalhas de papel dos restaurantes e 39 maços de tabaco – entre centenas em arquivo – desenhados com instrumentos musicais. Um hábito antigo, alimentado por quem insiste em colar pequenos papéis brancos nas pequenas embalagens.
Sobre o papel branco, o génio de Álvaro Siza Vieira expande-se. Para o curador da exposição, é ele o arquitecto que mudou o país. "É o arquitecto que foi capaz de imaginar um futuro melhor e com um compromisso político, para que todos pudéssemos ter o que estamos a reclamar: uma casa digna, um lugar para viver, para estar a trabalhar, onde apreciar cultura, para estar ao ar livre, onde desfrutar da vida."
O olhar sobre a obra de Siza não se fica pela exposição. Há um ciclo de cinema a arrancar no dia 21 de Maio, bem como duas oficinas de desenho, a 10 de Maio e a 1 de Junho, sendo a segunda destinada a famílias. No dia 4 de Junho, a Gulbenkian organiza uma mesa-redonda e convida jovens arquitectos a partilhar a influência que o arquitecto português teve nos seus trabalhos. Esta sexta-feira, pelas 17.00, há também visita guiada à exposição pelo próprio curador. Do imenso Siza, que ainda visitará a exposição, é o que cabe na Gulbenkian. Nas palavras de Carlos Quintáns, "precisávamos de duas".
Fundação Calouste Gulbenkian, Avenida de Berna, 45A. 21 782 3000. Qua-Dom 10.00-18.00. Até 26 Ago. 10€ (gratuito aos domingos, após as 14.00)