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Há quatro décadas que a música dos Mão Morta nos fascina e confronta. No entanto, não perderam o fulgor e a vontade de descobrir novos sons e dar novas formas às suas canções e concertos. Viva La Muerte está aí para atestá-lo, desde Janeiro nas lojas e plataformas de streaming, e esta quarta-feira, 26, no palco da Culturgest. O espectáculo, que devia ter coincidido com os 50 anos do 25 de Abril, é precedido pela conversa Do Fascismo à Extrema-direita e Vice-versa, de entrada livre, que junta Adolfo Luxúria Canibal e Miguel Pedro, dos Mão Morta, aos académicos Luís Trindade e Sílvia Correia, pelas 19.00 de terça-feira, 25, no Auditório Emílio Rui Vilar. Falámos com o vocalista.
Este disco devia ter saído em 2024, por causa dos 40 anos dos Mão Morta e dos 50 do 25 de Abril…
Nunca esteve previsto lançarmos o disco no ano passado. Ia sair quando o gravássemos, provavelmente lá para finais de 2025. O que estava previsto para 2024 era um espectáculo.
Em Outubro, na Culturgest.
Sim. Viva La Muerte devia ter estreado em Setembro de 2024, no Theatro Circo de Braga. E depois continuava em digressão pelo país. Só quando esses espectáculos acabassem é que iríamos entrar em estúdio para gravar o disco. Só que sofri um pequeno acidente, e tive de fazer uma intervenção cirúrgica, que conduziu a um longo período de imobilização. Isso fez com que alguns espectáculos marcados para 2024 fossem cancelados e outros adiados. E foi nessa altura que a banda entrou em estúdio, porque os temas estavam todos feitos, e tinha ficado ali um vazio. Por isso é que o disco saiu em Janeiro, na véspera da estreia do espectáculo, caso contrário teria sido completamente diferente.
Onde entram aqui os 40 anos da banda e os 50 anos do 25 de Abril?
Ainda em 2023, fomos convidados pelo Theatro Circo de Braga para comemorar os nossos 40 anos. Nessa altura, ainda nem sequer estávamos a pensar no que íamos fazer em 2024. Dissemos que íamos pensar no assunto, apesar de não sermos muito adeptos de olhar para o passado – preferimos fazer e descobrir coisas novas. E, em Março de 2023, respondemos: “Sim, senhor, fazemos o tal espectáculo comemorativo dos nossos 40 anos. Mas, como em 2024 serão os 50 anos do 25 de Abril, queremos também assinalar essa data, e propomos fazer um espectáculo que verse sobre o fascismo.”
Porquê juntar estas duas efemérides?
Porque sem o 25 de Abril, sem a democracia, os Mão Morta não existiriam. Esse é o único ponto de contacto entre as duas efemérides.
Sem a democracia, os Mão Morta não existiriam
Apesar de ser uma celebração desses 40 anos de carreira, este Viva La Muerte é um disco muito diferente dos anteriores.
É verdade. O facto de estarmos a comemorar o 25 de Abril levou-nos para caminhos que nunca tínhamos trilhado. Fomos buscar referências à música de intervenção pré e imediatamente após o 25 de Abril, nomeadamente o José Mário Branco. Utilizámos também um coro masculino, que era de alguma forma uma referência a uma das senhas do golpe de Estado: o “Grândola Vila Morena” [de José Afonso], que é um coro masculino, um cante alentejano. E essas referências obrigaram-nos, ao integrá-las na nossa sonoridade, a procurar novas harmonias, novas melodias, novos espectros vocais.
O coro é uma componente fulcral, de facto.
É a coluna vertebral de toda a composição. Mesmo nos temas em que não há coro, ele está lá por ausência. O Miguel Pedro, que foi o principal compositor, mas também o António Rafael, o outro compositor dos temas, tinham sempre presente que aquilo eram músicas para trabalhar com coro e explorar as suas possibilidades.
Presumo que também tenha condicionado a escrita das letras.
Sim. Estava a escrever e estava sempre a pensar que tinha um coro – fosse um coro grego, ou um coro operático. E há momentos de simultaneidade – em que a voz e o coro estão a dizer coisas diferentes ao mesmo tempo – que piscam o olho aos dadaístas do Cabaret Voltaire, durante a época em que eles estavam refugiados em Zurique, durante a primeira guerra mundial. Isto obrigou-me a repensar a escrita.
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É interessante falares nos dadaístas, uma referência que vai além da nossa música de intervenção. Tal como o título. “Viva la muerte” era o lema do Tercio de Extranjeros, da legião espanhola em África, e alude ao fascismo espanhol.
Apesar de o título ser espanhol, de facto, esta ideia do “viva la muerte” é central a todos os fascismos. O fascismo romeno tinha uma frase muito parecida com esta, por exemplo. É uma ideia intrínseca ao fascismo. Viva a morte, no sentido do sacrifício do corpo face à nação, face a algo mais elevado do que a vida, do que o indivíduo. Isto é matéria basilar das ideias fascistas. Portanto, não é uma citação tout court daquela frase. Aliás, o [Fernando] Arrabal, um escritor francês – hispano-francês – utiliza este título também num livro que escreveu e num filme que fez, num contexto um pouco diferente. É um lema fascista independentemente da nacionalidade. É transversal a todos estes movimentos.
Incluindo a muitos que não se assumem como fascistas. Como os populistas de direita que, nos últimos anos, têm vindo a ganhar terreno nos parlamentos europeus. Imagino que também tenha sido isso que vos levou a desenvolver este projecto.
Exactamente. Qualquer artista, qualquer trabalhador do espírito, cuja música tenha uma componente ética e cidadã, tem de denunciar este estado das coisas, este pulsar de morte que está no correr dos tempos. E não é só em Portugal, é na Europa, é nos Estados Unidos.
É em todo o lado.
E é um dever cívico denunciá-lo. Porque, como te dizia, sem a democracia, os Mão Morta não existiam. Portanto, uma ameaça à democracia é uma ameaça ao nosso habitat de existência, é uma ameaça à própria vida. Não só nossa, mas de todos os portugueses, todos os europeus, todos os americanos. Estamos a defender-nos de uma ameaça que paira sobre nós e nos quer aniquilar. Enquanto seres livres. Portanto, é uma coisa premente, é uma necessidade. E por isso fizemos este espectáculo e fizemos este disco.
Uma ameaça à democracia é uma ameaça à própria vida
O espectáculo é precedido por uma conferência, esta terça-feira, 25, na Culturgest, com um par de membros da banda, além Luís Trindade e Sílvia Correia. Porquê estas pessoas e esta conferência?
Desde o início, propusemos fazer também as conferências. A principal conferência, com quatro oradores, aconteceu em Braga, antes do espectáculo de estreia, na primeira casa que nos convidou para apresentar o Viva La Muerte. Mas todas elas são uma parte intrínseca do espectáculo. Como disseste há bocado – e bem – há uma data de movimentos populistas que hoje não se assumem fascistas. Porque hoje ninguém se assume como fascista, por muito fascista que seja.
Podem até fazer saudações nazis, e mesmo assim vão dizer que não. Que aquilo não é uma saudação nazi.
É uma saudação romana.
[Risos]
Pois. De maneira que, face a esta dificuldade semântica em situar as coisas, achámos por bem acompanhar o lado mais artístico – que de certo modo é mais livre na definição do termo – por uma conferência. Convidámos oradores, que têm o fascismo no cerne da sua investigação, para uma conversa em que todos pudéssemos aprender de uma forma mais correcta, mais científica, o que é esta ideia do fascismo e se podemos ou não considerar que estes movimentos populistas de extrema-direita são fascistas. Isso é parte integrante do nosso espectáculo, porque não vale a pena falar de fascismo se não sabemos o que é.
Concordo.
Quisemos identificar precisamente que ameaça é esta, independentemente de as pessoas se auto-intitularem ou não fascistas. Porque sempre houve características comuns a estes movimentos, e pequenas diferenças. Recordo que o fascismo italiano não era igual ao nazismo alemão.
E eram ambos diferentes do franquismo.
Claro. E o espanhol não era igual ao português; e o português não era igual ao italiano. Também não era igual ao grego, etc. Mas têm todos um corpo comum. Por exemplo, têm todos um inimigo, sejam os judeus, os muçulmanos, os ciganos. Este espectro do inimigo é que depois une as tropas ou a população atrás do líder, atrás da força da força motriz que é o movimento fascista. E é exactamente para identificar estas ideias e este corpo comum que estas conferências, ou estas conversas, são importantes. E é nesse sentido que elas acontecem. Para nós aprendermos. Nós, Mão Morta; nós, público em geral; nós, pessoas que se interessam por saber do que é que estamos a falar quando falamos de fascismo.
Além da temática, há mais alguns pontos de contacto entre as conferências e os concertos desta digressão?
Sim. Por exemplo, em Braga, eles também se debruçaram sobre as letras dos Mão Morta, que iam sendo projectadas. E fiquei muito satisfeito porque identificaram várias vezes a justeza da identificação do corpo fascista [naqueles versos]. Apesar de haver uma liberdade poética, este trabalho corresponde ao essencial da manifestação dos pilares angulares com que o fascismo se manifesta. Aliás, tive a satisfação de o Carlos Martins – que é o mais picuinhas em termos de identificação do concreto do que é fascista ou não é fascista – pegar no texto do primeiro tema do disco, que é também o primeiro tema do espectáculo, “Deus, Pátria, Autoridade”, e dizer: “Está aqui resumido o corpo que identifica o fascismo em si. O fascismo é isto, e tudo o resto são pequenas variações.”
Porquê “a satisfação”?
Porque passei meses a ler obras sobre o fascismo, sobretudo de autores contemporâneos, mas também algumas mais antigas. E, enfim, apesar de não ser um especialista, esse estudo ajudou-me a encontrar a maneira de resumir de uma forma justa aquilo que é o objecto do nosso trabalho.
Durante essas leituras, imagino que tenhas encontrado paralelismos entre os fascismos do século XX e os actuais fenómenos mórbidos. São todos reacções a crises económicas. Até se costuma dizer que o fascismo é o liberalismo em crise.
Exactamente. Podemos interpretá-lo dessa forma. Hoje, estamos em plena crise liberal – do liberalismo económico. Como já tínhamos estado antes.
Essa é a grande razão, a meu ver, para a popularidade destes partidos.
Sim, sim, sim.
E com uma grande desvantagem, face ao século XX, que é não haver uma esquerda forte, e capaz de apresentar alternativas, na maior parte dos países.
Não há. Aliás, esta crise começou com a queda do bloco soviético.
Esta crise começou com a queda do bloco soviético
Cem por cento.
Que podia ser um capitalismo de estado, mas de alguma forma obrigava o capitalismo de mercado a aproximar-se da social-democracia. Do estado social. Deixando de haver esse contrapeso, a União Soviética, o estado social deixou de ter razão de existir. Caminhou-se rapidamente para o liberalismo total. Com o Reagan, com a Thatcher, mesmo com aquele Partido Trabalhista inglês, o… como é que ele se chamava?
O Tony Blair.
Isso.
A Thatcher disse que o seu maior feito tinha sido o Tony Blair.
Exactamente. E foi este liberalismo, que também se verificou depois em França, que se verificou na Alemanha, em toda a Europa, que de alguma forma arruinou e tende a arruinar cada vez mais o estado social; que cria os desamparados e o aumento da pobreza; e o definhar da classe média, que dá origem a que depois toda essa gente seja um bom receptáculo para ideias de força e de poder e de repressão, que é de alguma forma uma espécie de vingança inconsciente do seu mal-estar.
Já que o estado não lhes dá mais nada, pelo menos que exerça a sua violência sobre as pessoas que, erradamente, eles culpam pelos seus problemas. Sejam os imigrantes de Martim Moniz, sejam os ciganos no Alentejo…
Sim.
Que não têm culpa nenhuma dos problemas que nós temos.
Antes pelo contrário. São vítimas. Aliás, nós próprios somos vítimas.
Óbvio.
Não conseguimos é perceber que há uma espécie de nuvem ideológica que nos impede de ver as coisas com clareza, e acabamos a alinhar por aí.
Ninguém nasceu para ser servil e morrer
Mesmo assim, há uma ideia de resistência subjacente à última faixa do disco, “Viva La Muerte”.
É verdade.
Porquê?
Estávamos a fazer um disco sobre o fascismo, sobre os perigos do fascismo, porém não queríamos fazer um disco – e quando falo do disco, estou a falar do espectáculo, cuja concepção precede o disco – que fosse negativo, que fosse um baixar de braços e uma espécie de choro sobre a nossa desgraça que se aproxima. Como se não houvesse nada a fazer. Quisemos, exactamente, acabar o espectáculo com essa reviravolta. Há algo que está aqui, de uma forma muda, mas que está aqui a latejar. Esta revolta é possível. Mudar este estado de coisas depende só de nós. E o digladiar final desse tema, que no fundo é o digladiar final do espectáculo, é exactamente entre duas vozes: uma que diz “viva la muerte” e outra que diz que “ninguém nasceu para ser servil e morrer”. E é esta última voz que se ouve no fim.
Culturgest. 26 Fev (Qua). 21.00. 20€
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