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Afro: “Apenas quem nunca foi segregado devido ao cabelo pode achar a temática descabida”

Marielle chegou à Vila Esperança em Março. Mas as suas aventuras ainda agora começaram. Descubra tudo sobre esta nova protagonista literária, em ‘Aventureira Marielle e o Dia da Fotografia’.

Raquel Dias da Silva
Jornalista, Time Out Lisboa
Aventureira Marielle e o Dia da Fotografia
Ilustração de Lala BerekaiAventureira Marielle e o Dia da Fotografia, de Nuna e Lala Berekai
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Era uma vez uma menina orgulhosa do seu afro. A história começa mais ao menos assim, até ao brutal instante em que alguém diz a Marielle que, para o dia da fotografia na escola, é melhor ela “arranjar” o cabelo. De repente, somos confrontados, por um lado, com a ditadura dos padrões de beleza, imposta sobretudo às mulheres desde muito cedo; e, por outro, com uma verdade muito mais terrível, mas pouco surpreendente: a de que a discriminação racial ainda persiste, insidiosa e incessante. É essa a realidade que Nuna denuncia no seu primeiro livro infantil. Editado pela Nuvem de Letras e ilustrado por Lala Berekai, Aventureira Marielle e o Dia da Fotografia é uma chamada de atenção para os pais, responsáveis por educar a próxima geração de adultos, e uma carta de amor às crianças, em particular às racializadas, para que cresçam a usar a sua voz e a ouvir a dos outros.

O lançamento, em Março deste ano, foi um sucesso. A livraria Almedina, na Rua da Escola Politécnica, encheu de tal maneira que não havia cadeiras para sentar tanta gente. Um mês depois, Nuna anunciou no seu Instagram (@itsnunaa), onde é seguida por mais de 17 mil pessoas, o regresso de Marielle para um segundo volume, que marcará o início de uma nova série de livros infantis, “a primeira escrita e protagonizada por uma negra portuguesa”. Pouco depois, o primeiro volume, disponível nas livrarias de todo o país, esgotou na editora. Para Nuna, é de facto um marco na sua história. “É uma celebração de todo o trabalho que eu venho a desenvolver nos últimos anos e é também o materializar do meu desejo de ajudar a criar um mundo em que eu gostasse realmente de viver”, diz à Time Out a artista e activista portuguesa. “Um mundo onde a representatividade, a inclusão, a diversidade e o empoderamento [de todos e em especial das minorias étnicas] é a normativa.”

Aventureira Marielle e o Dia da Fotografia

Como a grande maioria das crianças negras em Portugal, agora representadas por Marielle, Nuna e Lala também cresceram vítimas de agressões constantes, físicas e verbais, inclusive ao seu cabelo, e em espaços públicos. As chamadas micro-agressões, que perpetuam estereótipos negativos, geralmente sobre grupos marginalizados, são as “pequenas coisas” que, umas por cima das outras, constroem “um grande sistema de segregação”. “Apenas quem nunca foi segregado devido ao seu cabelo, ou quem nunca teve consciência dessa segregação, poderá achar a temática de empoderamento do cabelo afro descabida”, afirma Nuna, reforçando a importância de homenagear “todas as meninas negras que viram o texturismo e o mysoginoir [termo cunhado pela feminista negra Moya Bailey para abordar a misoginia dirigida às mulheres negras] roubar-lhes uma forma de expressão e amor próprio”. O cabelo afro e os seus diferentes penteados, cortes e uso de acessórios típicos é parte intricada do perfil estético que compreende a identidade negra.

Ambientada na ficcional Vila Esperança, no Sul de Portugal, a história de Marielle – assim nomeada em honra da socióloga e política brasileira Marielle Franco, que era voz activa dos direitos humanos, antes de ser assassinada em 2018 – fala-nos de cabelo, do afro e não só, mas também de outras diferenças e da importância de as abraçarmos. A diversidade é promovida também através das ilustrações expressivas de Lala Berekai. “Como BIPOC [black, Indigenous and people of color], a inspiração e a facilidade em transformar a visão da Nuna em arte deve-se também às minhas próprias experiências e como me pude relacionar a vários níveis pessoais com o texto”, esclarece a artista luso-timorense. “Todas as personagens [secundárias] têm a devida importância no universo de Marielle”, acrescenta, reforçando o cuidado em ser-se verdadeiramente inclusivo, por exemplo através da presença de “personagens que ainda são pouco visíveis no mundo dos livros infantis”, como uma criança de cadeiras de rodas.

A ambição de Nuna e Lala é dar espaço de fala a quem mais precisa. “Quando vivemos tanto tempo habituados ao silêncio de outros, quando estes falam, não sabemos como ouvir”, lamenta Nuna, sem nunca deixar de defender a urgência em ensinar as crianças a usarem a sua voz e a ouvirem a de outros. “As crianças absorvem as construções sociais presentes no nosso quotidiano. Se não educamos nem informamos acerca do certo e do errado com especificidade, condenamos a juventude a repetir os mesmos erros das gerações anteriores”, reforça, pronta para continuar a contar as aventuras da Marielle. “Cada novo livro terá uma temática diferente, debatendo diferentes discriminações e opressões para que comecemos realmente a conversar e a praticar o amor e o respeito pelos outros desde a pequena infância.”

Aventureira Marielle e o Dia da Fotografia. Nuvem de Letras. 2022. 48 pp. 14,35€

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