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De um lado, uma secretária e um sofá. Do outro, um toucador e uma cama. E em cada um desses espaços, duas Natálias, em diálogo, entre o presente, o passado e o futuro. O Dever de Deslumbrar é uma peça de teatro que nasce do estudo de seis anos que Filipa Martins – escritora, argumentista e jornalista – tem vindo a desenvolver sobre Natália Correia e que resultou numa biografia, lançada em Março deste ano e que dá o nome à peça. A encenação está a cargo da actriz e realizadora Ana Rocha de Sousa, que se estreia na tarefa de dirigir actores (e não só) em palco, após o sucesso da longa-metragem Listen (2020). Neste caso, debaixo das luzes estão as actrizes Teresa Tavares e Paula Mora, assim como a bailarina e coreógrafa Ana Jezabel, que assume em cena um lado mais onírico de Natália, com os seus movimentos de dança. O Dever de Deslumbrar – que recorda o pensamento e a vida da autora mais censurada em ditadura de uma forma não cronológica – é um espectáculo multidisciplinar, tal como a mulher que dá corpo e alma a esta história, contando ainda com música e ambiente sonoro criados por Surma (Débora Umbelino). A peça estará em cena primeiro no Teatro da Malaposta (em duas sessões esgotadas) a 10 e 11 de Novembro, no âmbito do LEFFEST, um dos financiadores desta produção, e depois segue para a Escola de Mulheres, de 30 de Novembro a 3 de Dezembro e para Teatro Turim, de 5 a 21 de Janeiro de 2024. Assistimos a um ensaio geral e, no final, falámos com Filipa Martins e Ana Rocha de Sousa, ambas também em diálogo constante.
“Colocamos uma Natália em diálogo com a outra Natália para conseguirmos ter uma perspectiva quer sobre a evolução da vida dela, quer sobre a evolução do seu pensamento, para, na minha opinião, chegarmos à conclusão de que ela era uma mulher de uma extrema coerência, e ainda uma mulher que vem do futuro”, começa por explicar Filipa Martins, que com Natália partilha a autoria dos textos deste espectáculo. Levar Natália para o palco, e o seu constante manifesto nascido de uma inquietação nata, pareceu natural para a autora que recorda Natália como uma figura que parecia estar “sempre em boca de cena”. “É muito normal associarmos a Natália à palavra teatral. Portanto, como não pô-la em cima do palco”.
Ana Rocha de Sousa é também uma artista multidisciplinar, enquadrando-se na perfeição neste caldo de disciplinas que podemos ver em palco. Realizadora, actriz e artista plástica (Natália era também pintora), confessa-se feliz por esta “descoberta absoluta de uma mulher que é muito responsável pela [sua] liberdade de hoje em dia”. “E, portanto, é neste sentido que abraço o projecto numa primeira fase e depois também sempre muito com esta vontade de conjugação das diferentes áreas que, de início, provocam, se calhar, alguma resistência ou estranheza, mas realmente para uma mulher como ela, que estava tão à frente do seu tempo, acho que não poderia ser mais indicado.” Filipa Martins acrescenta: “Foi uma boa pintora. Aliás foi, ao mesmo tempo, contemporânea do seu próprio mito, não é? Portanto, o texto também tenta criar aqui vários subtextos em que a imaginação, a realidade e os factos históricos dançam uns com os outros e não há uma linearidade cronológica. Há avanços e há recuos, porque muitas vezes compreendemos melhor o passado se olharmos através do futuro.”
Nesse de trás para a frente, move-se em palco uma figura mais transcendental, uma “terceira Natália que está a expressar um gesto mais largo que as personagens só atingem através da palavra”, acrescenta Filipa, numa referência a Ana Jezabel, “uma presença por si, diferente”, sublinha Ana, para quem esta terceira Natália tem diversas conotações ao longo do espectáculo. “Ela, por vezes, interpreta a censura e os obstáculos da vida, os grandes obstáculos da vida da Natália. Tanto da Natália como dos comuns mortais. Quer dizer que a vida é isto, que somos sempre confrontados com o que dizem de nós, o que pensam de nós, o que fazem com aquilo que nós fizemos ou com aquilo que publicamos. E portanto, essa personagem para mim é muito esse lado dos outros, mas também é muitas vezes a presença que fica em nós de uma Natália Correia.”
E que leitura terá a sociedade actual sobre o pensamento de Natália? Filipa, a responsável por costurar esse pensamento com as suas próprias palavras, diz que estabeleceu um “diálogo com a contemporaneidade” e dá um exemplo concreto. Numa das cenas, mistura um dos poemas de Natália com um texto mais contemporâneo sobre as vítimas de violência doméstica. “É o crime mais praticado em Portugal. Mas há vários pontos ao longo deste texto em que são criadas essas pontes e, no fundo, são recados para o presente. E os grandes vultos, os grandes pensadores, são aqueles que conseguem ser revisitados 100 anos após o seu nascimento e ainda dialogarem connosco. Eu gostaria que as pessoas se sentissem, em alguns momentos, desconfortáveis na cadeira. Porque ela não se põe num posicionamento de superioridade moral, pelo contrário. Ela é profundamente humana e, se calhar, são esses domínios, os domínios do humanismo, que têm sido secundarizados.” Sobre as lutas desta figura tão humana e inquieta, Ana Rocha de Sousa – que acredita na necessidade de nos continuarmos a debater pela igualdade entre homens e mulheres, mesmo nas ditas sociedades mais evoluídas – destaca que “Natália não fala só de feminismo”. “A Natália fala, acima de tudo, de liberdade. E, se para ela, a liberdade era o pilar da vida, para mim, a liberdade de tudo e de todos, em qualquer espaço e em qualquer lugar, é o pilar da vida. É por isso que estamos aqui. E é o que permite a criação.”
O Dever de Deslumbrar. Teatro da Malaposta, 10-11 Nov | Escola de Mulheres, 30 Nov-3 Dez | Teatro Turim, 5-21 Jan de 2024
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