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Estávamos na Idade Média quando, certo dia, um monge copista se lembrou de escrever e desenhar nas margens de um manuscrito. Um simples gesto que se tornou prática e se disseminou, tendo desde então dado origem a preciosos legados. É o caso, por exemplo, do enigmático Último Teorema de Fermat, que o matemático francês escreveu no seu exemplar de Aritmética, de Diofanto, juntamente com o seguinte comentário: “Tenho uma demonstração realmente maravilhosa para esta proposição, mas esta margem é muito estreita para a conter”. A isto se chama marginália. O termo foi cunhado pelo poeta inglês Samuel Taylor Coleridge (portanto, sem acento), que chegou a anotar mais de 450 livros ao longo da vida. Não foi o único. Jean-Paul Sartre, Jack Kerouac, Vladimir Nabokov, William Blake, Edgar Allan Poe e Mark Twain também eram conhecidos por serem ávidos anotadores. Mas, se as anotações feitas por essas e outras figuras históricas são objecto de estudo e leilões disputadíssimos, que valor poderão ter exemplares anotados por cidadãos comuns?
Duas a sete vezes o preço de mercado. É o que poderá custar uma cópia anotada por uma pessoa da qual nunca ouvimos falar. Parece bizarro, mas o advento das redes sociais tornou de interesse público o que outrora consideraríamos da esfera privada. Basta fazer scroll por perfis de bookstagrammers (tradução: influencers de livros no Instagram) para testemunhar a resposta à crescente procura por fotografias de páginas sublinhadas, com escritos pessoais e até etiquetas coloridas. O que provavelmente começou como só mais uma partilha tornou-se uma tendência internacional. E como tudo o que é moda se torna negócio, também há leitores ávidos armados em anotadores profissionais. Na Etsy, uma espécie de centro comercial online, são vários os vendedores dos EUA e do Reino Unido, mas também da Austrália, da Alemanha e dos Países Baixos, como Natasha C (ForTheIntroverts), que vende romances anotados a partir de 31€, ou Desiree Hernandez (LoversofLiterature), que vende livros anotados por mais de 65€. “Nunca comprei um livro anotado por outra pessoa, mas gostava imenso de o fazer. Neste momento, estou a desenvolver um projecto de troca e já emprestei aos meus amigos, que acham sempre engraçado”, diz Mariana Nunes, reconhecida no Instagram (@chroniclesofmariana), onde tem mais de 66 mil seguidores, também pelos seus photo dumps de #annotatedbooks.
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Frases grifadas, rabiscos, reacções não filtradas a determinados eventos, notas sobre o comportamento dos personagens e até comentários mais analíticos ou críticos a certas ideias. São várias as formas de “responder” ao texto ou de registar as inquietações por ele provocadas. Mariana só começou a fazê-lo com frequência no ano passado, quando estava a ler The Perks of Being a Wallflower e sentiu uma “necessidade estranha” de o tornar mais seu, mas há quem se lembre de ter o hábito desde o ensino secundário. “A minha professora [de português] deu a sugestão”, conta Ana Real (@ananascanread), antes de revelar que, com o tempo, foi criando o seu próprio sistema de organização por cores. “Azul para worldbuilding, amarelo para character development e verde para novo vocabulário [palavras ou expressões desconhecidas], porque [agora] leio sobretudo em inglês.” Pelo meio, vai opinando sobre o que está a acontecer. E não só planeia trocar livros com uma amiga, para depois discutirem onde é que as suas opiniões diferem ou coincidem, como já teve oportunidade de ler anotações de terceiros – mais por acaso do que de propósito. “Tento sempre comprar livros em segunda mão, mas não sei se conseguiria vender um livro anotado por mim. Parece-me demasiado pessoal.”
As anotações não servem só para interagir com a obra, também nos imortalizam como leitores. Afinal, ler pode ser uma actividade solitária, mas anotar intencionalmente, mesmo que sem esperança de nos descobrirem, é uma forma de nos relacionarmos, com o texto, com o autor ou com os futuros proprietários daquele exemplar. E o que há de mais humano do que a urgência universal de nos sentirmos acompanhados nas nossas vivências? “Já cheguei a comprar livros só pelas dedicatórias que neles encontrava, escritas por alguém que não conheço nem virei a conhecer”, confessa Conceição Afonso que, até se tornar independente, nunca ousou rabiscar um livro. “Só a partir da faculdade. Sublinhava porque queria reviver aquelas frases que me tinham soado tão bem. Como filha única, [os livros] também eram meus amigos, conversavam comigo e eu com eles.” E, apesar de não ter intenções de vender os seus livros anotados, assume-se fascinada por livros verdadeiramente usados, consumidos. “Um selo que não circula não cumpre a sua função. Com um livro é a mesma coisa.”
A alfarrabista Catarina Pires Serradas concorda. No Mundo do Livro (Largo da Trindade 11-13), que herdou do pai (João Rodrigues Pires morreu aos 100 e era o alfarrabista mais antigo de Portugal), encontramos inúmeros tesouros anotados. Desde um exemplar de O livro do menino Deus, de Aquilino Ribeiro, corrigido e comentado à mão pelo próprio autor, até outros títulos, sobretudo de não-ficção, anotados por anónimos. “Já passaram sabe-se lá por quantas casas”, suspira a alfarrabista, que admite não gostar de vender livros: se pudesse, ficava com todos. “[Os livros usados] têm outro carácter. Uns vêm muito bem cuidados. Outros um bocadinho destruídos. Mas até têm graça.” À partida, são sinais de amor: quem o diz é a escritora e editora Isabel Minhós Martins, da Planeta Tangerina. “Tem a ver com o que o leitor precisa de fazer para se relacionar com o livro. Agora, vejo a minha filha e as amigas a marcar os livros com imensos post-its. E depois trocam [os livros] umas com as outras”, partilha. “Eu sublinho e escrevo. O Gonçalo M. Tavares diz que lê sempre de lápis na mão e desde que o ouvi dizer isso que fiquei com vontade de copiar.” Por outro lado, na hora de emprestar exemplares anotados pensa sempre duas vezes – nunca imaginou sequer que a prática “se ia abrir para a Internet”. “Lembro-me de encontrar um livro muito anotado por alguém num alfarrabista e fez-me confusão estar a entrar num território muito íntimo. Depois pensei que isso pode acontecer a qualquer pessoa. Os livros que anotamos agora podem ir parar a um alfarrabista e alguém os vai ler.” Ou a um mercado de livros anotados por anónimos portugueses. A tendência internacional ainda não pegou por cá, mas parece que existem curiosos suficientes para pelo menos começar.
Notícia actualizada, originalmente publicada na edição de Verão 2022 da revista trimestral Time Out Lisboa
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