[title]
Um clássico precisa de tempo para o ser. E precisa de história para se aguentar. Luís Gaspar sabe disso. E é por isso que na hora de abrir um novo restaurante se rodeia de quem melhor sabe, mesmo que por trás tenha a estrutura de uma grande empresa, como tem da Plateform. Não se trata tanto de dinheiro, embora o investimento seja determinante, mas sim de coerência. É isso que, a longo prazo, fará diferença. É isso que faz com que, hoje, se mantenha à frente de três restaurantes, bem distintos entre si: a Sala de Corte, o Pica-Pau e o Brilhante. É neste último que nos sentamos ao balcão com Virgílio Nogueiro Gomes, o gastrónomo a quem o chef recorre sempre que precisa.
“Ele tem a preocupação da história, quer fazer bem”, diz-nos Virgílio. A história que o Brilhante quer contar, a de uma Lisboa boémia e nocturna, nos anos 1960 e 70, Luís Gaspar não a viveu, mas Virgílio, sim – além de a ter estudado como poucos. Na carta do restaurante, que ainda cheira a novo, apesar de carregar uma alma antiga, com os tons de madeira a fundirem-se com o vermelho das paredes e do veludo, procura recuperar-se a identidade gastronómica da época, com o bife à Brilhante (22€/vazia, 28€/lombo) a resgatar o bife à Marrare do túnel do tempo. “Um prato icónico de balcão dos anos 60/70”, aponta o chef. Este, com 26 lugares, é mesmo o centro de tudo.
“Sabiam que é na mudança dos anos 50 para os 60 que aparece, discretamente em Portugal, o termo snack bar? E o que é? Um bar onde se comiam snacks, geralmente com balcões”, conta Virgílio, ávido de partilhar conhecimento. “Tem tudo tem a ver com o fim da Guerra Civil de Espanha e da Segunda Guerra Mundial. O movimento social, o desenvolvimento da indústria, começa a criar o hábito de as pessoas comerem fora de casa. Como não vivem no centro da cidade, os balcões vêm resolver o problema dos almoços. Enquanto ao jantar era uma diversão, o almoço tinha de ser rápido e é por isso que aparece o conceito de snack bar”, explica, destacando como todos eles “tinham mesinhas para à noite servirem refeições”. “O exemplo mais paradigmático, e que se mantém, é o Galeto. Havia outros restaurantes que eram em balcão e desapareceram aos bocadinhos. Agora está-se a retomar outra vez.”
Virgílio Nogueiro Gomes, autor de vários livros, entre os quais À Portuguesa – Receitas em livros estrangeiros até 1900 (Marcador), que lhe valeu o Prémio de Literatura Gastronómica 2022 da Academia Internacional de Gastronomia, não precisa de muito para falar. As histórias sucedem-se, sempre sem papas na língua. Gosta de uma boa provocação, diz o que tem a dizer, doa a quem doer. Até a Luís Gaspar. Ultimamente, anda numa luta contra a gratificação que aparece já sugerida nas contas, como acontece no Brilhante. “É que não partilho no meu Instagram, nem vou mais”, assume, de forma meio rabugenta. “Qualquer dia não tem restaurantes para ir”, responde, em tom de brincadeira e de forma a desanuviar, o chef. “Como em casa”, pronta-se a retorquir Virgílio.
E passa para outra história: “Há tempos estive num restaurante em que me serviram umas amêijoas à Bulhão Pato. Cheirei logo e perguntei: isto foi feito com vinho? Claro, respondem. Claro, não. A amêijoa à Bulhão Pato não leva vinho, leve já para trás que eu não como.” “Já oiço esta história do Virgílio há quase dez anos”, atira Luís. “E a partir daí nunca mais pus vinho.”
Acha que é um cliente chato?, perguntamos nós. “Sou um cliente muito fácil”, garante o gastrónomo, olhando na direcção do chef, em busca de uma resposta. “Não é chato, é exigente, tem um grande critério e discute pormenores”, clarifica Luís Gaspar. “Eu ensino muitas vezes restaurantes”, assume Virgílio, sem ponta de arrogância. “Há quantos anos eu lhe ligo a si para pedir dicas, informações e observações? É porque o admiro”, acrescenta Luís Gaspar para Virgílio se recordar da aventura que foi quando os dois andaram em alfarrabistas, antes da abertura do Pica-Pau no Príncipe Real, para criar uma biblioteca especializada em cozinha portuguesa. “Eu sou muito disponível”, assume, sem falsa modéstia, o amigo de longa de data de Maria de Lourdes Modesto, com quem estava a escrever um livro quando esta morreu em Julho do ano passado.
No seu site (virgiliogomes.com), publica com frequência crónicas que tanto podem recuar no tempo e desvendar menus de antigamente, como ser desabafos de quem passa a vida em restaurantes, ou relatos das suas descobertas. Os contactos que ali tem são os seus, faz questão de dizer. “Quem quiser, pode contactar-me”, diz. É o seu número também que guardam alguns alfarrabistas e leiloeiras. “Ai, sou muito furão”, aponta, revelando fazer colecção de menus. “Mas só me interessa do século XIX até ao princípio do século XX porque o menu perdeu a categoria, o interesse, a partir do século XX.” Do Tavares, por exemplo, o restaurante do Chiado que abriu pela primeira vez em 1784 e que foi comprado pela Plateform há quase seis anos, Virgílio tem “mais de vinte menus dos anos 1930”. Quem sabe, não serão úteis quando o restaurante de luxo renascer, num projecto ainda sem data e sobre o qual nada se sabe ainda.
“Hoje em dia a dificuldade é ser original. Já se experimentou tanta coisa, tanto de tudo, que não é fácil. Só se puserem aqui uns baloiços e servirem-nos a baloiçar”, ironiza. “Eu tenho pena que se invente muito a cozinha neste momento e que se volte sempre ao mesmo. Quantas receitas se inventaram dos anos 1980 até agora? Milhares. E quantas ficaram no consumo? Olhe, o Luís, que foi buscar uma antiga para aqui.” Virgílio não fala em tom de crítica, pelo contrário, aprecia que a história não fique esquecida, bem como tudo o que chega à mesa, apesar de hoje se manter com muitos cuidados. “Eu quero viver até aos 300 anos. Tenho de me poupar para as excepções”, afirma. É o que faz quando é servido um dos bestsellers do Brilhante, o arroz de lavagante (45€), em que deixa o arroz de parte. “Sou muito fino”, brinca. Não é a primeira vez que aqui se senta, já cá tinha estado, ou não tivesse a relação que tem com Luís Gaspar. Foi, aliás, nessa primeira vinda que aconselhou o chef a usar um ferro para queimar o crème brulée (10€), em vez do maçarico. “Vamos tratar”, garante o chef, perguntando ainda assim: “Mas acha que com o ferro fica assim uniforme?” Virgílio não hesita: “É uma questão emocional. Eu não quero que seja uniforme, é exactamente isso que me encanta”. E continua: “Um restaurante não é só a comida, a comida tem que ser porreira, mas há uma série de coisas que nos levam a voltar e gostar de estar. Coisas simples às vezes são as melhores.”
Rua da Moeda, 1 H (Cais do Sodré). 21 054 7981. Seg-Sex 12.00-16.00/ 19.00-01.00, Sáb-Dom 12.00-01.00
+ No Gambrinus, ao balcão, o tempo passa devagar e nunca fora de moda