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Se os chefs estavam longe de ser estrelas quando Filipe Carvalho começou na cozinha, o mesmo não se pode dizer de Nelson Freitas, quase dez anos mais novo. Não haverá hoje quem entre nas escolas de hotelaria sem a ambição de vir a chefiar um restaurante. “Nós éramos [vistos como] aqueles que não queriam estudar”, ri-se o chef executivo do Fifty Seconds by Martín Berasategui, na Torre Vasco da Gama. Sentado ao seu lado, está o seu junior sous chef e hoje centro de todas as atenções, depois de ter conquistado o concurso mundial San Pellegrino Young Chef Academy 2023. Se, com a glamourização da profissão, já é difícil tantas vezes manter os pés na terra, o que fazer quando se ganha o título de melhor jovem chef do mundo?
“Não é fácil”, admite Nelson. “Eu tenho dito muito isto: se há um mês eu não estava pronto para assumir uma cozinha, não é por levantar o caneco que passo a estar.” Não é sequer essa a ambição, por agora. Há um caminho que precisa de ser feito. “Mas é para isso que ele trabalha, não é?”, responde, rápido, Filipe Carvalho. Os dois trabalham juntos há quatro anos, mas já se tinham cruzado logo no início da carreira de Nelson, quando este estagiou no Vila Joya, o restaurante com duas estrelas Michelin de Dieter Koschina, em Albufeira, onde Filipe trabalhava na altura. “Depois fiz um estágio no Serge Vieira [o chef luso-francês que morreu este ano] e acabei por lá ficar uma época a trabalhar. A seguir, fui para Birmingham e estive dois anos num restaurante estrelado, até o chef me convidar para vir para aqui”, conta Nelson, deitando por terra a ideia romântica de a cozinha ser uma paixão antiga. “É bonito de dizer, mas não tinha essa paixão”, ri-se. “O meu sonho também era ser jogador de futebol”, atira Filipe. “Eu acabei o 9.º ano e tinha ouvido umas coisas da Escola de Hotelaria [de Viana do Castelo, de onde é natural]. Havia aquela curiosidade [à volta] do rigor, da disciplina… Eu não era de todo assim, mas lá acabei por entrar e despertou-se aí”, resume o junior sous chef, ainda pouco à vontade com entrevistas. “Eu sempre trabalhei dentro das quatro paredes da cozinha e agora está a ser um bocado diferente”, destaca.
Entre o burburinho das redes sociais, os pedidos dos meios de comunicação social e até idas à televisão a programas de entretenimento, há um antes e depois do San Pellegrino Young Chef Academy. A ideia de participar no concurso partiu de Nelson Freitas, mas ditavam as regras que não o podia fazer sozinho, precisava de um mentor. A escolha era óbvia. “Fazia todo o sentido ser o chef Filipe e ele apoiou-me com uma condição: dedicar-me a 100%. Ganhar era secundário, não era expectável, mas o objectivo tinha que ser esse”, explica. “Eu não me importava de o ajudar e de estar comprometido neste processo desde que ele mostrasse esse compromisso”, complementa Filipe Carvalho. Quem o conhece, reconhece-lhe, precisamente, a ética e a entrega no trabalho, não seria diferente aqui. Nem Filipe exige nada que não aplique a si também. “Não é que ganhar ou perder seja relativo, mas o mais importante era nós entregarmos alguma coisa da qual nos orgulhássemos”, adianta o chef.
A grande final aconteceu a 5 de Outubro, em Milão, onde Nelson concorria com mais 14 jovens promessas da gastronomia mundial, já depois de ter conquistado no ano passado a final ibérica, em Barcelona. Isto significa que o chef não estaria em Itália a representar apenas Portugal, mas Espanha também. O prato que o fez brilhar? Salmonete crocante, ouriço-do-mar e alho negro caseiro. “Decidimos em conjunto. Fomos trocando ideias, mas uma coisa foi muito clara: tinha de ter peixe e marisco. E eu queria transmitir também de onde venho [Viana do Castelo]. O salmonete é um dos nossos peixes favoritos, usamos aqui diariamente. O ouriço-do-mar é da minha terra natal”, contextualiza Nelson.
Riccardo Camanini (Lido 84, restaurante italiano com uma estrela Michelin e em sétimo lugar no The World's 50 Best Restaurants); a francesa Hélène Darroze, com seis estrelas Michelin em três restaurantes; Vicky Lau (Tate Dining Room, duas estrelas Michelin em Hong Kong); a peruana Pía León, considerada em 2021 a melhor chef do mundo, co-proprietária (ao lado de Virgilio Martinez) do Central (número um nos 50 Best deste ano); e a norte-americana Nancy Silverton (uma estrela Michelin na Osteria Mozza) compuseram o júri. “Lembro-me, ao apresentar o prato, de dizer que gostava que a pessoa que o provasse que provasse um pouco de Portugal e um pouco do mar. E o comentário que mais me ficou na cabeça foi o da chef Nancy Silverton, que disse: ‘Adorei o facto de dizeres que querias que provássemos o mar porque eu realmente provei o mar, mas sem engolir o mar’.”
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“Nós já estávamos muito felizes por termos ganho a eliminatória ibérica, não por termos mostrado que Portugal ganhou a Espanha, mas por termos mostrado que o nosso trabalho também é reconhecido, principalmente em Espanha, com toda a qualidade e com tudo o que eles fazem e com tudo o que eles entregam.” Filipe insiste muito nisto. “Às vezes há aquele discurso dos coitadinhos, Espanha é que é bom, nós não prestamos para nada. Não é nada disso”, acredita o chef. “Acho que a nova geração, com exemplos como o Nelson, se calhar já pode olhar de forma diferente, mas a minha geração ainda sofre um bocadinho esse estigma. E na geração anterior à minha é que havia mesmo esse sentimento de inferioridade, e era normal, porque estávamos um bocadinho distantes e díspares do que eles faziam, mas hoje em dia não ficamos atrás em nada”, defende Filipe, com a certeza de que hoje é o profissional que é porque também saiu do país. “Eu também aprendi com eles, também vi. Não nos podemos esquecer do que é que eles também nos deram e ajudaram a crescer e a evoluir.”
O futuro, crê, passa pela união. “Se todos pensarmos como um todo, Portugal é muito forte. Portugal é tudo. Eu tentei passar este sentimento ao Nelson: não olhes para nomes, não olhes para número de estrelas, vamos fazer o nosso trabalho”, diz. “Não são os nomes que ganham prémios. Nós vamos lá fazer o nosso melhor, se o nosso melhor for melhor que o deles somos nós que vamos ganhar. E, no final, ele ganhou”, remata Filipe. “Ganhámos”, corrige Nelson.
O desafio, agora, é não se deixar levar pelo entusiasmo. “Eu disse-lhe várias vezes: não te esqueças de quem é que tu és, como é que chegaste aqui e como é que tens de continuar. Se não te esqueceres disso, está tudo bem”, aponta ainda o chef executivo. “Ele tem que viver este momento, é um evento muito importante, mas também tem que perceber que isto não vai durar para sempre.” Filipe admite que pode parecer chato falar assim, mas ao longo do seu percurso já viu bons talentos perderem-se pelo caminho. E não é o que quer que aconteça aqui. Não que tema que aconteça, até porque na sua cozinha ninguém está sozinho. “Eu tenho que puxar por eles e eles têm que puxar por mim”, defende. “Quando se fala do Fifty Seconds fala-se do Filipe Carvalho, mas isto é uma equipa. Somos 21 pessoas a trabalhar. Eu posso ser a cabeça ou a cara que aparece, mas na realidade, para eu estar a falar contigo, alguém tem que estar lá dentro a trabalhar.”
E é esse o exemplo que se tenta passar. “Quando estás lá em cima, dizes: eu é que sou, eu é que faço e não sei quê, mas depois um gajo cai tão rápido… Se estivermos em equipa, quando caímos, ao menos caímos mais apoiados.”
Torre Vasco da Gama. MYRIAD by SANA Hotel (Parque das Nações). Ter-Sex 19.00-22.00, Sáb 12.30-14.00/ 19.00-22.00
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