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Continua a ser um dos grandes mistérios da língua portuguesa: porque é que tudo junto se escreve separado e separado se escreve tudo junto? É uma charada antiga que rememoro frente à nova loja de pasteis de nata no Largo de São Domingos, paredes-meias com a Ginjinha do Rossio, em Lisboa. O nome da casa é Nata Portuguesa; a sua assinatura é Concerteza!
Assim, tudo junto, concerteza está sem dúvida mal escrito. A forma correcta é com certeza, separado, locução adverbial que exprime a segurança de uma frase – um manifesto exagero, neste caso.
Não me espanta o erro exclamado, tampouco (e esta escreve-se mesmo assim) quero denunciar um crime de lesa-pátria. Saber se uma expressão cabe numa palavra inteira ou se precisamos de a grafar em duas palavras distintas é das hesitações mais frequentes entre os falantes da língua. Por outro lado, estamos em terra de pombos e já vi toldos manchados de muita coisa. O mais relevante para mim é a gralha ter pousado ali em Setembro e ainda ninguém ter disparado sobre ela.
Depois de um mês e três ou quatro pastéis, concluo que há duas razões plausíveis para a demora. A primeira é a consistência do equívoco: concerteza! está pespegado na fachada, nas caixas para levar, nos suportes de guardanapos, no menu da entrada – calculo que enxertar um espaço em tudo isto implique um rebranding e às tantas fica mais barato esperar que a corruptela entre nos dicionários.
A segunda é ninguém dar por ela. A Baixa é outro país e não estou certo de que o português figure entre as três línguas mais faladas no Rossio. Seguindo esta hipótese, a longevidade do toldo não denuncia a iliteracia de quem escreve, mas a ignorância de quem lê.
Para o público que pretende alcançar, o que conta é mesmo o descritivo: traditional portuguese custard. O espaço é um clássico pré-feito, aquele ar despojado de padaria antiga, chão de azulejo, balcão de mármore, fabriqueta atrás, meia dúzia de metros quadrados onde só se vendem pastéis (1,30€ a peça) e bebidas (café, chocolate quente, vinho do Porto, tudo em copo descartável). E aí, nenhuma calinada a reportar. Achei a massa pouco folhada, o conjunto molengão, o creme meio industrial, demasiado abaunilhado e demasiado limão, e conto facilmente dez custards melhores no raio de 1 km (0,621371192 milhas, para quem me estiver a ler em americano). Ainda assim, não envergonha a nação. As peças saem quentinhas e não imagino que os camones saiam a maldizer a pastelaria indígena.
Se a língua portuguesa tem muitas armadilhas, a Baixa tem com certeza muitas mais. E aqui, apesar de tudo junto, não está uma delas.
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